Publicado em 1960, "A Trégua" é o mais famoso romance de Mario Benedetti e uma das obras mais importantes da literatura latino-americana contemporânea. Escrito em formato de diário e com fina ironia, o livro conta a história de Martín Santomé, um "homem maduro, de muita bondade, meio apagado mas inteligente".
Prestes a completar 50 anos, viúvo há mais de vinte, Santomé mora com os três filhos. Não se relaciona bem com nenhum deles, tem poucos amigos e mantém uma rotina monótona e cinzenta. No diário, conta os dias que faltam para a aposentadoria; mas não tem idéia do que fará assim que se livrar do trabalho maçante.
Seu destino, no entanto, mudará quando conhecer Laura Avellaneda, uma jovem discreta e tímida contratada para ser sua subalterna. Com ela, Martín Santomé voltará a conhecer o amor, numa luminosa trégua para uma vida até então triste e opaca.
O livro é ao mesmo tempo uma delícia de se ler, com um ritmo bom, uma narrativa envolvente e pra quem não é fã de obras extensas, há um bônus: ele é bem curtinho (li praticamente em uma noite).
Entretanto, se o texto é delicioso de se ler, ele também esconde uma história simples e previsível, até mesmo clichê em certos momentos (em especial, o final). É, certamente, um daqueles casos em que a jornada importa mais do que o destino, ou traduzindo-se em termos literários, o texto importa mais do que a história (a história é contada pelo texto, mas o texto não se limita a contar a história).
Uma das maneiras pelas quais eu julgo um livro é a quantidade de trechos que acho que valem citações. Em alguns casos, de textos realmente bons, em quase todas as páginas você encontra trechos interessantes que tem vontade de compartilhar. A Trégua foi um desses casos. Mas, claro, não vou transcrever o livro todo aqui, apenas algumas partes que separei durante a leitura:
Sonhando no trabalho:
O que eu menos odeio é a parte mecânica, rotineira, do meu trabalho: repassar um lançamento que já redigi milhares de vezes, efetuar um balanço de saldos e constatar que tudo está em ordem, que não há diferenças a buscar. Esse tipo de tarefa não me cansa, porque me permite pensar em outras coisas e até (por que não dizer a mim mesmo?) também sonhar. É como se eu me dividisse em dois entes díspares, contraditórios, independentes, um que sabe de cor seu trabalho, que domina ao máximo as variantes e os meandros dele, que está sempre seguro de onde pisa, e outro sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria, um distraído a quem não importa por onde corre a pena nem que coisas escreve a tinta azul que em oito meses ficará negra.
Reflexão sobre a criação dos filhos e a mulher já há muito falecida:
Esteban e Blanca têm os olhos de Isabel. Jaime herdou dela a testa e a boca. O que Isabel pensaria se pudesse vê-los hoje, preocupados, ativos, maduros? Tenho uma pergunta melhor: o que eu pensaria, se pudesse ver Isabel hoje? A morte é uma experiência aborrecida; para os outros, sobretudo para os outros. Eu deveria me sentir orgulhoso por haver ficado viúvo com três filhos e ter conseguido seguir adiante. Mas não me sinto orgulhoso, e sim cansado. O orgulho é para quando se tem 20 ou 30 anos. Seguir adiante com meus filhos era uma obrigação, o único escape para que a sociedade não me encarasse e me dedicasse o olhar inexorável que se reserva aos pais desalmados. Não havia outra solução, e eu segui adiante. Mas tudo sempre foi por demais obrigatório para que pudesse me sentir feliz.
Sobre a cidade e suas diferentes vidas:
Bom, às vezes não chego ao horizonte e me conformo com me acomodar à janela de um café e registrar a passagem de algumas pernas bonitas.
Estou convecido de que, durante o expediente, a cidade é outra. Conheço a Montevidéu dos homens com horário, os que entram às oito e meia e saem às 12, os que retornam às duas e meia e vão embora definitivamente às sete. Esses rostos crispados e suarentos, esses passos urgentes e tropeçantes são meus velhos conhecidos. Mas existe a outra cidade, a das frescas moçoilas que no meio da tarde saem recém-banhadinhas, perfumadas, desdenhosas, otimistas, espirituosas; a dos filhinhos da mamãe que acordam ao meio-dia e às seis da tarde ainda trazem impecável o colarinho branco de tricolina importada; a dos velhos que tomam o ônibus até a Aduana e depois retornam sem desembarcar, reduzindo sua módica farra à simples mirada reconfortante com que percorrem a Cidade Velha de suas nostalgias; a das mães jovens que nunca saem de noite e entram no cinema, com cara de culpadas, por volta das três e meia da tarde; a das babás que denigrem suas patroas enquanto as moscas devoram as crianças; a dos aposentados e ociosos vários, enfim, que crêem ganhar o céu jogando migalhas aos pombos da praça. Esses são meus desconhecidos, ...
Sabedoria de bêbado:
Esta tarde, quando eu vinha do escritório, um bêbado me deteve na rua. Não protestou contra o governo, nem disse que ele e eu éramos irmãos, nem tocou em nenhum dos incontáveis temas do pileque universal. Era um bêbado estranho, com uma luz especial nos olhos. Segurou meu braço e disse, quase apoiando-se em mim: "Sabe o que lhe acontece? Que você não vai a lugar nenhum." Outro sujeito que passou nesse instante me fitou com uma alegre dose de compreensão e até me dedicou uma piscadela de solidariedade. Mas já faz quatro horas que estou intranquilo, como se realmente não me dirigisse a lugar nenhum e só agora o percebesse.
Sobre domingo, suicídio e os solitários:
Se eu algum dia me suicidar, será num domingo. É o dia mais desalentador, o mais sem graça. Quem me dera ficar na cama até tarde, pelo menos até as nove ou as dez, mas às seis e meia acordo sozinho e já não consigo pregar o olho. Às vezes penso o que farei quando toda a minha vida for domingo. Quem sabe? Vai ver que me acostumei a despertar às dez horas. Fui almoçar no Centro, porque os rapazes saíram para o fim de semana fora, cada um para seu lado. Comi sozinho. Nem sequer tive forças para entabular com o garçom o fácil e ritualístico intercâmbio de opiniões sobre o calor e os turistas. Duas mesas adiante, havia outro solitário. Tinha o cenho franzido, partia os pãezinhos a socos. Duas ou três vezes olhei para ele, e numa oportunidade seus olhos cruzaram com os meus. Tive a impressão de que ali havia ódio. O que haveria para ele nos meus olhos? Deve ser uma regra geral, isso de nós, os solitários, não simpatizarmos uns com os outros. Ou será que, simplesmente, somos antipáticos?
Rotina e postergação como vício:
Eu mesmo fabriquei minha rotina, mas pelo caminho mais simples: a acumulação. A segurança de me saber capaz para algo melhor me deu o controle da postergação, que no fim das contas é uma arma terrível e suicida. Daí que minha rotina jamais tenha tido caráter nem definição; foi sempre provisória, sempre constituiu um rumo precário, a ser seguido apenas enquanto durava a postergação, apenas para aguentar o dever da jornada durante esse período de preparação que por certo eu considerava imprescindível, antes de me lançar definitivamente à concretização do meu destino. Que tolice, não? O resultado é que agora não tenho vícios importantes (fumo pouco, só por enfado tomo uma caninha de vez em quando), mas creio que já não poderia deixar de me postergar: esse é meu vício, aliás incurável. Porque se agora mesmo eu decidisse me assegurar, numa espécie de juramento tardio: "Vou ser exatamente o que eu quis ser", de nada adiantaria. Primeiro, porque me sinto com escassas forças para jogá-las numa mudança de vida, e depois porque, agora, que validade tem para mim aquilo que eu quis ser? Seria algo como lançar-me conscientemente a uma senilidade prematura. O que desejo hoje é muito mais modesto do que aquilo que desejava trinta anos atrás, e, sobretudo, importa-me bem menos obtê-lo. Aposentadoria, por exemplo. É uma aspiração, naturalmente, mas é uma aspiração em declínio. Sei que vai chegar, sei que virá sozinha, sei que não será preciso que eu proponha nada. Assim é fácil, assim vale a pena entregar-se e tomar decisões.
Sobre o tempo dele e o tempo dela:
O tempo se vai. Às vezes, penso que precisaria viver apressado, tirar o máximo partido destes anos que restam. Hoje em dia, qualquer um pode me dizer, depois de esquadrinhar minhas rugas: "Mas o senhor ainda é um homem jovem!" Ainda. Quantos anos me restam de "ainda"? Penso nisso e me dá pressa, tenho a angustiante sensação de que a vida me foge, como se minhas veias se tivessem aberto e eu não pudesse deter meu sangue. Porque a vida são muitas coisas (trabalho, dinheiro, sorte, amizade, saúde, complicações), mas ninguém vai me negar que, quando pensamos nessa palavra, Vida, quando dizemos, por exemplo, que nos "agarramos à vida", estamos assimilando-a a outra palavra mais concreta, mais atraente, mais seguramente importante: estamos assimilando-a ao Prazer. Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e tenho certeza de que isso é vida. Daí a pressa, a trágica pressa destes 50 anos que me pisam os calcanhares. Ainda me restam, assim espero, uns quantos anos de amizade, de saúde passável, de afãs rotineiros, de expectativa ante a sorte, mas quantos me restam de prazer? Eu tinha 20 anos e era jovem; tinha 30 e era jovem; tinha 40 e era jovem. Agora tenho 50 anos e sou "ainda jovem". "Ainda" significa: está acabando.
E esse é o lado absurdo da nossa combinação: dissemos que iríamos encarar tudo com calma, que deixaríamos o tempo correr, que depois reavaliaríamos a situação. Mas o tempo corre, queiramos ou não, o tempo corre e a deixa a cada dia mais apetecível, mais madura, mais fresca, mais mulher, e a mim, em contraposição, me ameaça a cada dia com me tornar mais achacadiço, mais gasto, menos valente, menos vital. Temos de nos apressar em direção ao encontro, porque, em nosso caso, o futuro é um inevitável desencontro. Todos os seus Mais correspondem aos meus Menos. Todos os seus Menos correspondem aos meus Mais. Compreendo que, para uma mulher jovem, pode ser um atrativo saber que aquele sujeito viveu, que há muito ele substituiu a inocência pela experiência, que ele pensa com a cabeça bem firme sobre os ombros. É possível que isso seja um atrativo, mas como é breve! Porque a experiência é boa quando vem de mãos dadas com o vigor; depois, quando o vigor se vai, a gente passa a ser uma decorosa peça de museu, cujo único valor é ser uma recordação do que se foi. A experiência e o vigor coexistem por muito pouco tempo. Eu estou agora nesse pouco tempo. Mas não é uma sorte invejável.
Sobre o ambiente de trabalho no escritório:
Nos escritórios não existem amigos; existem sujeitos que a gente vê todos os dias, que se enfurecem juntos ou separados, fazem piadas e se divertem com elas, que trocam suas queixas e se transmitem seus rancores, que reclamam da Diretoria em geral e adulam cada diretor em particular. Isso se chama convivência, mas só por miragem a convivência pode chegar a parecer-se com a amizade. Em tantos anos de escritório, confesso que Avellaneda é meu primeiro afeto verdadeiro. O resto traz a desvantagem da relação não escolhida, do vínculo imposto pelas circunstâncias. O que eu tenho em comum com Muñoz, com Méndez, com Robledo? No entanto, às vezes rimos juntos, tomamos um trago, tratamo-nos com simpatia. No fundo, cada um é um desconhecido para os outros, porque neste tipo de relação superficial fala-se de muitas coisas, mas nunca das vitais, nunca das verdadeiramente importantes e decisivas. Creio que o trabalho é que impede outro tipo de confiança; o trabalho, essa espécie de constante martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico. Algumas vezes, um deles (Muñoz, especialmente) se aproximou de mim para iniciar uma conversa realmente comunicativa. Começou a falar, começou a delinear com franqueza seu auto-retrato, começou a sintetizar os termos do seu drama, desse módico, estacionado, desconcertante drama que intoxica a vida de cada um, por mais homem médio que se sinta. Mas há sempre alguém chamando lá do balcão. Durante meia hora, ele tem de explicar a um cliente inadimplente a inconveniência e o castigo da mora, discute, grita um pouco, seguramente se sente envilecido. Quando volta à minha mesa, olha para mim e não diz nada. Faz esforço muscular correspondente ao sorriso, mas suas comissuras se dobram para baixo. Então, pega uma planilha velha, amassa-a no punho, consciensiosamente, e depois a joga na cesta de papéis. É um simples substitutivo; o que não serve mais, o que ele atira na cesta de lixo, é a confidência. Sim, o trabalho amordaça a confiança.
Paixão e muitas palavras em uma:
Nós nos entreolhamos e soltamos uma risada. Imaginei que o feitiço se quebrara, que o famoso ápice havia passado... Mas ela estava comigo, eu podia senti-la, palpá-la, beijá-la. Podia dizer simplesmente: "Avellaneda". "Avellaneda" é, além do mais, um mundo de palavras. Estou aprendendo a injetar-lhe centenas de significados, e ela também aprende a conhecê-los. É um jogo. De manhã, digo: "Avellaneda", e significa: "Bom-dia." (Há um "Avellaneda que é reprimenda, outro que é aviso, mais outro que é desculpa.) Só que ela me entende mal de propósito, para me enfurecer. Quando pronuncio o "Avellaneda" que significa: "Vamos fazer amor?", ela responde, muito faceira: "Acha que eu vou embora agora? É muito cedo!" Ah, os velhos tempos em que Avellaneda era só um sobrenome, o sobrenome da nova auxiliar (faz apenas cinco meses que anotei: "A mocinha não parece ter muita vontade de trabalhar, mas pelo menos compreende o que a gente explica"), a etiqueta para identificar aquela pessoinha de testa ampla e boca grande que me olhava com enorme respeito. Ali estava ela agora, diante de mim, envolta em sua manta. Não me lembro de como era ela quando me parecia insignificante, inibida, nada além de simpática. Só me lembro de como é agora: uma deliciosa mulherzinha que me atrai, que me alegra absurdamente o coração, que me conquista. Pisquei conscientemente, para que nada nos estorvasse depois. Então meu olhar a envolveu, muito melhor do que a manta; na realidade, não era independente da minha voz, que já começara a dizer: "Avellaneda". E, desta vez, ela me entendeu perfeitamente.
Reflexões sobre corpos:
Ela está ao meu lado, adormecida. Estou escrevendo numa folha solta, esta noite transcrevo para a caderneta. São quatro da tarde, o final da sesta. Comecei a pensar numa comparação e terminei em outra. Está aqui, ao meu lado, o corpo dela. Lá fora faz frio, mas aqui a temperatura é agradável, mais para quente. O corpo dela está quase descoberto, a manta e o lençol deslizaram para um lado. Quis comparar este corpo com minhas lembranças do corpo de Isabel. Evidentemente, eram outros tempos. Isabel não era magra, seus seios tinham volume, e por isso caíam um pouco. Seu umbigo era fundo, grande, escuro, de margens grossas. Seus quadris eram o melhor, o que mais me atraía; tenho uma memória táctil dos seus quadris. Seus ombros eram cheios, de um branco rosado. Suas pernas estavam ameaçadas por um futuro de varizes, mas ainda eram bonitas, bem torneadas. Este corpo que está ao meu lado não tem absolutamente nenhum traço em comum com aquele. Avellaneda é magrinha, seu busto me inspira um pouquinho de piedade, seus ombros estão cheios de sardas, seu umbigo é infantil e pequeno, seus quadris também são o melhor (ou será que os quadris sempre me comovem?), suas pernas são delgadas, mas bem-feitinhas. No entanto, aquele corpo me atraiu, e este me atrai. Isabel tinha, em sua nudez, uma força inspiradora, eu a comtemplava e imediatamente todo o meu ser era sexo, não havia como pensar em outra coisa. Avellaneda tem, em sua nudez, uma modéstia sincera, simpática e indefesa, um desamparo que é comovedor. Ela me atrai profundamente, mas, aqui, o sexo é só uma parte da sugestão, do chamamento. A nudez de Isabel era uma nudez total, mais pura, talvez. O corpo de Avellaneda é uma nudez com atitude. Para amar Isabel, bastava sentir-se atraído pelo seu corpo. Para amar Avellaneda, é necessário amar o nu mais a atitude, já que esta é pelo menos metade do seu atrativo. Ter Isabel entre os braços significava abraçar um corpo sensível a todas as reações físicas e capaz também de todos os estímulos lícitos. Ter em meus braços a concreta magreza de Avellaneda significa abraçar além disso seu sorriso, seu olhar, seu jeito de falar, o repertório da sua ternura, suas reticência ao entregar-se por completo e as desculpas pelas suas reticências. Bom, essa era a primeira comparação. Mas veio a outra, e essa outra me deixou pesaroso, desanimado. Meu corpo de Isabel e meu corpo de Avellaneda. Que tristeza. Nunca fui um atleta, Deus me livre. Mas aqui havia músculos, aqui havia força, aqui havia uma pele lisa, elástica. E, sobretudo, não havia tantas outras coisas que, desgraçadamente, agora existem. Desde a calvice desequilibrada (o lado esquerdo é o mais deserto), o nariz mais largo, a verruga do pescoço, até o peito com ilhas ruivas, o ventre retumbante, os tornozelos varicosos, os pés com incurável e deprimente micose. Diante de Avellaneda, não me importa, ela me conhece assim, não sabe como eu fui. Mas importa diante de mim, me importa reconhecer-me como um fantasma da minha juventude, como uma caricatura de mim mesmo. Há uma compensação, talvez: minha cabeça, meu coração, enfim, eu, como ente espiritual, talez seja hoje um pouco melhor do que nos dias e nas noites de Isabel. Só um pouco melhor, também não convém iludir-se demais. Sejamos equilibrados, sejamos objetivos, sejamos sinceros, vá lá. A resposta é: "Isso conta?" Deus, se é que existe, deve estar lá em cima admirado. Avellaneda (oh, ela existe) está agora cá embaixo, abrindo os olhos
O fantasma da solidão:
Mas, mesmo pensando por minha conta, poderia desconfiar do ócio, sempre que o ócio fosse uma simples variante da solidão; como poderia ser, no meu futuro de alguns meses atrás, antes de Avellaneda aparecer. Com ela instalada na minha existência, porém, já não haverá solidão. Isto é: tomara que não haja. Convém ser mais modesto, mais modesto. Não diante dos outros, isso não importa. Convém ser mais modesto quando o sujeito se enfrenta, quando se confessa a si mesmo, quando se aproxima da sua verdade extrema, que pode até chegar a ser mais decisiva do que a voz da consciência, porque esta sofre de afonias, de rouquidões imprevistas, que com frequência a impedem de ser audível. Agora já sei que minha solidão era um horrível fantasma, sei que aimples presença de Avellaneda bastou para espantá-la, mas sei também que ela não morreu, que deve estar juntando forças em algum porão imundo, em algum arrabalde da minha rotina. Por isso, só por isso, abro mão da minha suficiência e me limito a dizer: tomara.
Sobre chefes e patrões babacas:
Esta manhã, estive falando com dois membros da Diretoria. Coisas sem grande importância, mas que bastaram, no entanto, para me fazer entender que eles sentem por mim um afável, compreensivo desprezo. Imagino que, quando se refestelam nos macios assentos da sala da Diretoria, devem sentir-se quase onipotentes, ou pelo menos tão próximos do Olimpo quanto pode chegar a sentir-se uma alma sórdida e escura. Alcançaram o máximo. Para um jogador de futebol, o máximo significa chegar um dia a integrar a seleção nacional; para um místico, comunicar-se alguma vez com seu Deus; para um sentimental, encontrar em outro ser, em alguma ocasião, o verdadeiro eco dos seus sentimentos. Para esta pobre gente, em contraposição, o máximo é conseguir sentar-se nas poltronas de dirigentes, experimentar a sensação (que para outros seria tão incômoda) de que alguns destinos estão em suas mãos, alimentar a ilusão de que resolvem, de que dispõem, de que são alguém. Hoje, no entanto, ao observá-los, eu não conseguia encontrar neles uma cara de Alguém, mas sim de Algo. Parecem-me Coisas, e não Pessoas. Mas o que lhes parecerei eu? Um imbecil, um incapaz, um joão-ninguém que se atreveu a recusar uma oferta do Olimpo. Uma vez, faz muitos anos, ouvi o mais velho deles dizer: "O grande erro de alguns homens de comércio é tratar seus empregados como se estes fossem seres humanos." Nunca me esqueci nem me esquecerei dessa frasezinha, simplesmente porque não a posso perdoar. Não só em meu nome, como também em nome de todo o gênero humano. Agora sinto a forte tentação de inverter a frase e pensar: "O grande erro de alguns empregados é tratar seus patrões como se estes fossem pessoas." Mas resisto a essa tentação. Elas são pessoas, sim. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infamante das piedades, porque a verdade é que formam para si uma casca de orgulho, uma embalagem repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem a mais horrível variante da solidão: a solidão daquele que nem sequer tem a si mesmo.
Contando as memórias de Isabel a Avellaneda:
Eu tive sorte, afinal. Isabel era boa, eu não era um cretino. Nossa união nunca foi complicada. Mas o que teria acontecido, se o tempo tivesse chegado a desgastar esse ameaçado atrativo do sexo? "Conte-me coisas de Isabel" era um convite à sinceridade. Eu sabia o risco que corria. O ciúme retrospectivo (por sua impossibilidade de rancor, por sua falta de desafio, por sua improvável repetição) é assustadoramente cruel. Não obstante, fui sincero. Contei as coisas de Isabel que verdadeiramente eram dela. E minhas. Não inventei uma Isabel que me permitiria ganhar pontos diante de Avellaneda. Tive o impulso de fazer isso, claro. Todo mundo gosta de ter uma boa imagem, e, depois de obter essa boa imagem, gosta de mostrar-se melhor ainda diante da pessoa a quem ama, diante da pessoa a quem pretende, por sua vez, parecer meritório para ser amado. Não inventei Isabel, primeiro por achar que Avellaneda é digna da verdade, e depois porque eu também sou digno, porque estou fatigado (e, neste caso, a fadiga é quase uma repulsa) da dissimulação, dessa dissimulação que a gente aplica como uma máscara sobre o velho rosto sensível. Por isso, não me assombra que, à medida que Avellaneda foi-se inteirando de como havia sido Isabel, também fui-me inteirando de como havia sido eu.
Sobre a pressa de viver:
Imagino a bronca de Muñoz, com dois funcionários a menos na seção e toda a responsabilidade sobre seus ombros. Não somente imagino como compreendo. Mas não importa. Estou numa idade em que o tempo parece e é irrecuperável. Tenho de me agarrar desesperadamente a esta razoável ventura que veio me buscar e me encontrou. Por isso é que não posso me tornar magnânimo, generoso, não posso colocar as preocupações de Muñoz acima das minhas. A vida se vai, está indo agora mesmo, e eu não consigo suportar essa sensação de escape, de encerramento, de final. Este dia com Avellaneda não é a eternidade, é só um dia, um pobre, indigno, limitado dia, que todos nós, de Deus para baixo, condenamos. Não é a eternidade, mas é o instante, que, afinal, é o único sucedâneo verdadeiro da eternidade. Portanto, tenho de acelerar, tenho de gastar esta plenitude sem nenhuma reserva, sem previsão alguma. Talvez depois venha o ócio definitivo, o ócio assegurado, talvez haja depois muitos dias como este, e eu pense então nesta pressa, nesta impaciência, como num ridículo esgotamento. Talvez, só talvez. Mas este Enquanto Isso traz o alívio, a garantia daquilo que é, daquilo que está sendo.
Andarilho, ficou muito bacana a forma que você separou algumas partes por tema, gostei, ficou bem original! bjs
ResponderExcluirvou ter q ler...
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