2010-07-03

Filme: Flor do Deserto

Certas histórias do mundo real se parecem mais com contos de fadas, ou mesmo filmes feel good de Hollywood. Se contarmos a história de Waris Dirie resumidamente, certamente ela se encaixará nesta categoria: de filha de nômades na Somália, passando por faxineira em uma lanchonete em Londres, até o estrelato como modelo internacional, e reconhecida ativista dos direitos femininos. Entretanto, a vida não é um conto de fadas. E a história desta mulher, evidentemente com glamour, mas também com muito sofrimento e drama, é contada no filme Flor do Deserto, (ou Desert Flower, o título internacional do filme).

filme flor do deserto waris dirie poster cartaz
O filme é baseado no livro autobiográfico, de mesmo nome, da ex-modelo e ativista Waris Dirie. Flor do Deserto é o significado do nome "Waris", na língua da Somália. Um significado que condiz muito com a carreira de modelo, mas que não traduz todas as agruras pela qual essa flor teve que passar, para desabrochar.

Filha de nômades na Somália, Waris (que adulta é interpretada pela modelo etíope Liya Kebede), ainda quando criança, mais precisamente aos 3 anos de idade, sofreu o que eu descrevo como uma barbárie, mas muitos intelectualóides podem descrever como um rito cultural, algo chamado levemente de circuncisão feminina. Que na realidade é algo bem mais brutal e mutilador do que a tradicional circuncisão, tão praticada entre os judeus: a retirada do clitóris da mulher ainda criança, bem como de seus lábios vaginais, terminando com uma costura que praticamente fecha a genitália feminina. Um ritual que além de mutilar, ainda provoca milhares de mortes (sobretudo por infecções), devido às condições precárias em que ele se realiza, tendo o corte das partes da menina sendo feito (sem qualquer esterilização) por meio de lâminas como o "gilete" que a gente usa pra barbear.

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No início de Flor do Deserto, vemos Waris ainda menina mas um pouco mais velha, cuidando da criação de cabras, enquanto nasce um filhote de uma delas. Estas cenas iniciais nos mostram a dureza da vida dos nômades na Somália, ao mesmo tempo em que servem de vitrine para a ótima e bela fotografia da natureza africana. Então, corta para Londres, com Waris já adulta. A câmera a acompanha dentro de uma loja, em uma sequência intencionalmente confusa: a diretora Sherry Horman, que também assina como roteirista, com isso, nos passa a confusão e dúvidas da própria personagem.

E é nesta loja que Waris acaba conhecendo Marylin (Sally Hawkins), uma vendedora aspirante a bailarina. Com pena, Marylin acaba ajudando Waris, mesmo sem entender o que realmente se passa com ela (apenas sabe-se que está pobre e definitivamente precisa de ajuda). Com o tempo, nasce uma amizade entre as duas, ao mesmo tempo em que ficamos sabendo mais sobre a situação atual de Waris.

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Aos poucos, Waris começa a se ambientar, em conjunto à vida de Marylin. Numa ocasião, Marylin a leva para uma boate, onde Waris se encontra com Harold Jackson (Anthony Mackie, de filmes como Guerra ao Terror), quando pinta um clima. Mas, a forte repressão a que Waris foi submetida ainda a afeta, e numa reação praticamente de estresse pós-traumático, Waris foge. E essa sequência de cenas culmina numa cena tão emocionante quanto dramática: a cena em que Waris descobre que o que fizeram a ela quando criança não é algo exatamente normal (pro mundo, de forma geral).

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A vida de Waris sofre uma grande mudança quando ela é "descoberta" pelo famoso fotógrafo de modelos, Terry Donaldson (Timothy Spall), enquanto trabalha como faxineira numa lanchonete. Começando uma carreira de modelo, o principal entrave para ela agora é a sua situação de imigrante legal. E por aí vai a história, até culminar com o ativismo da modelo contra o brutal ritual mutilador a que são submetidas as meninas na Somália (e em alguns outros países que compartilham o costume).

Se no tempo presente de Flor do Deserto vemos Waris lutando em Londres, é por meio de flashbacks que ficamos sabendo todo o caminho que Waris percorreu até chegar à grande cidade. Ao todo, são três grandes flashbacks, que também servem como marcadores de arcos da história dela. Imagine que em uma vida, todos temos muitas histórias, ou arcos de histórias. Em uma vida fascinante como a de Waris, era de se esperar que houvessem vários destes arcos. Apesar de extremamente interessantes, ainda assim é um pouco cansativo num filme, ter tantos arcos assim. A quantidade de "mini-clímaxes" na história poderia arruinar o filme, mas a colocação dos flashbacks entre os arcos da vida adulta de Waris, faz com que esse problema se amenize bastante. Uma excelente saída.

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Apesar disso, ainda em relação aos arcos, o filme ainda tem um defeito substancial, na minha opinião. O último arco da história de Flor do Deserto é sobre o ativismo de Waris contra a mutilação das jovens meninas. Entretanto, a passagem para este arco, ou seja, o desenvolvimento da personagem até este ponto de sua vida, é mostrada meio aos pulos, numa sequência envolvendo o interesse romântico Harold Jackson. Já bem sucedida na carreira, uma pequena cena a mostra em sua casa, tão vazia quanto a "alma" dela agora. Por isso, ela parte em busca do "amor" que conhecera na boate. Quando ela o vê com outra (que mais para a frente descobrimos que é apenas companheira de quarto dele), ela sai correndo. Clichêzinho básico de comédia romântica, mas que é tão desnecessário quanto não funcional. Aliás, não li o livro por isso pode ter acontecido como foi mostrado, mas todo o desenvolvimento desse interesse romântico soou falso demais no filme. Ainda mais que é só depois disso que o ativismo dela surge no filme, como se fosse um substituto para o "amor".

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As atuações do filme estão excelentes. Liya Kebede realmente convence como Waris, mesmo este sendo apenas o seu terceiro papel (não considerando os Victoria's Secret Fashion Shows), e primeira vez como protagonista. A química dela com Sally Hawkins, que faz a amiga Marylin, é notável. Hawkins (de filmes como Simplesmente Feliz), que já é uma premiada atriz, consegue tanto demonstrar alegria e ser um excelente alívio cômico em alguns momentos, quanto demonstrar profundas emoções nas cenas dramáticas. A cena, que já citei, em que ela e Kebede mostram seus corpos (não explicitamente para a câmera, mas uma para a outra) e descobrem o que tem de errado com Waris, é excelente.

A menina que interpreta a Waris ainda jovem, Soraya Omar-Scego também está excelente, eu diria até espetacular. Neste aspecto, a diretora merece muito os parabéns. Além da ótima atuação dos atores profissionais, muitos dos retratados na "parte Somália" do filme não são sequer atores.

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Vale mais uma vez, mencionar a fotografia do filme, muito boa. Fora a já mencionada paisagem africana, e todas as cenas passadas ali (especialmente as cenas da jornada de Waris pelo deserto), destaque também para a fotos de Waris como modelo. São lindas, do tipo que eu colocaria aqui no blog. ;) Ressalto ainda a cena em que é feita a transição da Waris jovem para a adulta, já interpretada por Kebede, é muito boa.

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Se em uma ou outra cena, a diretora Sherry Horman perde a mão (por exemplo, no segundo flashback, quando exagera em querer emocionar, mostrando o avião de Waris partindo e o irmãozinho dela cuidando das cabras), no geral Horman consegue manter o filme num nível ótimo. As cenas que focam a barbárie da mutilação genital, por exemplo, são fortes como deveriam ser, mas não são visualmente explícitas. É a velha técnica usada por Se7en, em que não mostrar pode ser tão ou mais perturbador do que mostrar.

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Enfim, Flor do Deserto não é a história de um conto de fadas. Mas é a história de uma mulher. Que poderia não ter sido, mas que de um jeito (milagroso, talvez), foi. E que, na sua jornada, ajudou a mostrar ao mundo que o significado de ser mulher pode ser doloroso demais, cruel demais, bárbaro demais. E que não precisa ser assim.

Trailer:



Para saber mais: site oficial (em inglês) de Flor do Deserto. Tem interessantes comentários da diretora, do produtor e da própria Waris Dirie.

2 comentários:

  1. Andarilho, que filme fantástico. Fiquei muito interessada, porque eu pesquiso sobre "mulher negra", e apesar da diferença de local, de situação e tal, tem muito da quebra do silêncio que procuro.

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  2. o filme parece ser ótimo, mas vou procurar ler o livro primeiro.

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