2011-02-11

Filme: Como Esquecer

Alguns filmes têm em sua temática, uma faca de dois gumes. Mesmo que acabem sendo mais amplos, certos temas provocam essa reação (ou muitas vezes, preconceito) no público. Ao mesmo tempo em que ela (a temática) com certeza atrairá determinado nicho, também pode afastar o público em geral, pensando que se trata de um filme voltado a apenas aquele determinado público. Talvez este seja o caso do filme brasileiro Como Esquecer, que fui conferir numa sessão um tanto vazia do projeto "cine cult" do Cinemark, no fim de semana passado. Uma pena, pois o filme é excelente e muito maior do que a impressão de seu tema passa a princípio.

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Como Esquecer nos apresenta Júlia (Ana Paula Arosio), professora universitária de literatura inglesa, que recentemente terminou um relacionamento de dez anos com Antônia, por motivação desta última. Sim, eram um casal lésbico. Júlia sofre bastante com a separação, e vai afundando cada vez mais, preocupando cada vez mais Hugo (Murilo Rosa), o melhor amigo de Júlia. Entretanto, Hugo também seus dramas, uma vez que sofrera recentemente com a morte do seu companheiro Pedro. Sim, é o clichê do melhor amigo gay, que pelo menos neste filme, tem uma razão de ser (a saber: a ambientação/círculo de amizades da protagonista).

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Apesar de ser difícil para Júlia, ela começa a tentar levar novamente uma vida normal, dando aulas e orientando Carmem Lygia (Bianca Comparato), uma aluna aplicada e, de sua maneira, fascinada pela sua professora/orientadora. Mas as maiores transformações começam mesmo quando Júlia e Hugo se unem a Lisa (Natália Lage) para dividirem uma casa no interior do Rio de Janeiro. Ali, junto com outras Hugo e Lisa, Júlia enfrentará a sua jornada pelo abismo que é um amor perdido, sendo apoiada e apoiando. Afinal, uma das vantagens, como a própria Júlia diz, é que "dividir a casa traz o conforto do calor do rebanho", numa ótima cena em que os três adormecem juntos (sem nenhuma conotação sacana, numa cena bem meiga até). A gradual melhora de Júlia acaba coincidindo (ou não) com a chegada de Helena (Arieta Corrêa), prima de Lisa.

Apesar de Como Esquecer ter todo um contexto no universo GLS (a simpatizante, a única heterossexual dos protagonistas, é Lisa), o filme não é, de forma alguma SOBRE esse universo. Ele não é sobre gays ou sobre lésbicas ou sobre quaisquer outras orientações sexuais. É sobre pessoas, mais especificamente, sobre o sentimento de perda num relacionamento, ou como se pergunta a protagonista logo no início do filme, sobre o que é "o contrário do amor".

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Sem dúvida o filme é ótimo, mas a sua profundidade é, no mínimo, inquietante. Afinal, quem nunca sofreu de dor de cotovelo? Ou mesmo tenha ficado deprimido(a) por causa de um relacionamento que acabou? Considero que as melhores obras artísticas (e filmes podem sem dúvida se encaixar nessa definição), são aquelas que conseguem ressonância em nosso íntimo. E, neste sentido, Como Esquecer consegue um grande êxito, sendo que o clima depressivo inicial é quase palpável a frente da tela. Talvez essa profundidade não seja bem vista pelo público como um todo (que geralmente escolhe os seus filmes como simples escapismos), mas é inegável que a trajetória da tristeza vivida pela protagonista é de uma realidade ímpar, pontuada pela narração da personagem que vai nos revelando seus pensamentos mais sombrios, como "o tempo não tem fim, ele é o fim".

Como Esquecer é um filme de atores, o que quer dizer que seu lado técnico é voltado para que as interpretações sejam a atração principal. Isso, entretanto, não quer dizer que ele não tenha destaques neste sentido. A diretora Malu De Martino posiciona a sua câmera de maneira ótima. Basta reparar no início do filme, em que ela abusa dos planos fechados no rosto de Ana Paula Arosio. De certa maneira, essa câmera nos proporciona criar uma intimidade com o sofrimento e a dor da protagonista, mas ao mesmo tempo nos repele um pouco, por causa da sensação de fechamento, de claustrofobia. Além disso, o enquadramento fechado permite que a atuação da atriz se sobressaia, assim como os longos planos com a câmera parada, o que também permite que o texto se destaque.

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Mesmo se passando no Rio de Janeiro, a fotografia é predominantemente cinzenta, como dias nublados e chuvosos, o que enfatiza a tristeza (é uma metáfora/clichê visual - chuva e lágrimas -, mas que ainda funciona muito bem). É exatamente o contrário do estereótipo desta cidade, normalmente retratada com muitas cores quentes e vivas. O filme ainda tem algumas cenas gravadas em Londres, que basicamente são cenas de flashbacks como filmes caseiros, da época em que Júlia ainda estava com Antônia, que nunca é mostrada, por estar "segurando" a câmera (a cena inicial do filme, é uma dessas cenas). Interessante notar que Londres, que é uma cidade conhecida por seu clima cinzento e depressivo, é mostrado com muita luz e o máximo de cores possível (reparem nas flores da cidade), apesar do céu ainda meio sem cor (a produção não deve ter pego um tempo tão bom por lá). Uma ótima sacada, como metáfora visual do clima como humor/(in)felicidade da protagonista.

Entretanto, não dá pra dizer que Como Esquecer seja um filme perfeito. Algumas coisas parecem meio deslocadas ou esquecidas pelo caminho. Provavelmente a causa é que o filme seja a adaptação do livro Como Esquecer - Anotações quase inglesas, de Myriam Campello, e que para o filme, certas coisas tenham sido cortadas ou diminuídas (o que, aliás, é algo muito comum em adaptações de livros). Tome por exemplo, uma das cenas visualmente mais belas do filme, em que Júlia está sentada na soleira da casa, embaixo de uma chuva torrencial. O cenário todo escuro e cinzento, constrastando com memórias da viagem de Júlia à Inglaterra, com flores rosas. E nessa hora, surge uma menina com um guarda-chuva rosa, sendo que o guarda-chuva é praticamente a única coisa colorida em tela. A menina procura por seu gato, que fugira. Mais tarde na trama, o gato aparece e meio que acaba fazendo parte da casa/família dos três protagonistas. Mas sem nenhum grande diferencial pra história. E, aparentemente, a menina continuou sem o seu gato...

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Se Como Esquecer é um filme de atores, estes não fazem feio. Destaque absoluto para Ana Paula Arosio, que tem uma ótima performance e uma caracterização igualmente excelente. Longe da imagem de diva que ela construiu, Ana Paula encarna uma mulher comum, sem glamour, com um jeito de "acabada", de cansada (como a personagem Júlia deve ser), mas também muito sensível. Murilo Rosa também convence como o melhor amigo Hugo, mesmo que a caracterização dele sofra de pequenos momentos clichês e o seu personagem tenha como fardo não apenas o drama pessoal, mas no contexto do filme, ser o alívio cômico para não deixar a sua amiga Júlia e a própria película, descambarem para o abismo da depressão pura. Arieta Corrêa como Helena parece deslocada, mas isso pode ser intencional, uma vez que sua personagem não só viveu muito tempo fora do Brasil, mas também passa por um momento de profundas mudanças em sua vida. Completando o time de atores principais, Natália Lage e Bianca Comparato entregam boas performances, sendo que Comparato ganha mais destaque, tendo ótimos momentos em tela, quando oferece uma certa leveza e uma apimentadinha na trama.

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E já que tocamos neste assunto mais safadinho, por assim dizer, não tenho como não destacar duas cenas belíssimas do filme que estão relacionadas ao sexo, claro. (POSSÍVEIS SPOILERS ATÉ O FINAL DO PARÁGRAFO!) A primeira é a cena em que Júlia se masturba no banho, com lembranças da ex. A cena é visualmente sensual e bela (afinal, é Ana Paula Arosio se tocando), ao mesmo tempo que é triste por causa da imagem que ela usa para se excitar (as lembranças da ex, mesmo Júlia, de certa forma, sofrendo com isso), revelando ainda que pessoas são também animais, no que concerne aos nossos instintos e necessidades (coisa que a própria Júlia logo em seguida aborda nas falas). A segunda cena, mais leve (no sentido de não conter uma carga de tristeza/drama como a anterior) e muito mais sensual, é a cena de sexo entre Júlia e Helena. Eu, que adoro mulheres de cabelo curto e achei a Arieta Corrêa lindíssima, adorei a cena. Sensual? Sexy? Sim. E também sensível e delicada. E é visualmente reveladora (mas não pornográfica). Pessoalmente, é interessante notar que no mesmo dia em que assisti Como Esquecer, assisti também Cisne Negro, outro filme que tem como duas cenas principais (no quesito sensualidade/sexualidade), uma cena da protagonista se masturbando e outra cena da protagonista fazendo sexo com outra mulher. Enfim, foi um bom dia. ;) E se me perguntassem de quais cenas eu mais gostei, eu diria que foi a da masturbação de Nina e o sexo de Júlia e Helena.

(E pra não dizer que só tem cenas com mulheres peladas, o filme também apresenta uma cena de nú frontal masculino.)

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Como Esquecer é nitidamente sobre personagens humanos, independente da orientação sexual, e nos conta a sua história sem levantar bandeiras de lutas pelos direitos desse ou daquele grupo. Ao contrário de alguns filmes, cujos personagens representam grupos, em Como Esquecer os personagens são indivíduos. Por isso, até mesmo o desfecho da trama de Lisa, a única personagem heterossexual entre os protagonistas, que eu considero de uma burrice tremenda por parte da personagem, não pode ser encarado seriamente como apologia a um estilo ou outro de vida. (POSSÍVEIS SPOILERS ATÉ O FINAL DESTE PARÁGRAFO!) Todos os personagens principais conseguem prosseguir com a vida, de forma satisfatória, um final feliz, por assim dizer. Entretanto, o final feliz de Lisa consiste em voltar para um rapaz que havia largado ela quando ela havia ficado grávida e que não esteve junto dela quando ela resolveu abortar. (Desculpe, mas isso pra mim é idiotice). E note que os outros personagens (que são homossexuais) prosseguem a vida descobrindo novos amores, o que cria essa dicotomia. Como eu disse, essa linha pode dar margem a uma argumentação de que o filme é pró-gays (ou qualquer coisa idiota do gênero). Entretanto, o meu sentimento ao ver o filme não foi esse (pode ser que no livro seja diferente e o arco da personagem tenha sido mantido, mas estou especulando porque não li o livro ainda).

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Enfim, se alguém leu até aqui (eu acho que esse texto ficou maior do que o do Cisne Negro, que eu já considerava o maior de todos os meus textos de filmes ever), saiba que Como Esquecer é um filme excelente. Dramático e triste, mas sensível e esperançoso, ele engana quem pensa que seu tema a primeira vista (um relacionamento lésbico) dite os rumos da película. Na verdade, esse é apenas um pano de fundo que deixa em primeiro plano os sentimentos e pensamentos de uma mulher sofrendo (e que cujo sofrimento pode, e certamente foi, compartilhado por vários corações rachados por aí). Enfim, vale a pena assistir (nem que seja pra ver a cena entre Ana Paula Arosio e Arieta Corrêa).

Trailer:



Para saber mais: blog oficial do filme Como Esquecer, onde além das informações de praxe (sinopse, elenco, equipe técnica, etc.), você ver onde o filme está passando (pois tem algumas cópias itinerantes, afinal, conseguir vaga em sala de cinema sendo filme meio independente não é fácil). Além disso, tem links pra conta oficial no youtube (com depoimentos dos atores/atrizes, making of) e pra conta no FlickR (que é fascinante, mostrando a produção no dia a dia até a estreia, e outras fotos).

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