Uma das "regras" (se é que podemos chamar assim) das prostitutas é de sempre usar um "nome de guerra". Além de evitar o reconhecimento público (porque sim, a maioria não assume a profissão - ou o trabalho - abertamente), essa troca de nomes muitas vezes age como uma defesa psicológica, como se fosse um papel, uma personagem que a mulher veste para fazer o trabalho. Assim, pelo menos na teoria, quem atende o cliente é a personagem e não a pessoa. Ou seja, o cliente tem acesso a uma performance, e não à verdadeira mulher. E isso sintetiza muito o filme de uma das mais famosas prostitutas brasileiras, Raquel Pacheco, ou Bruna Surfistinha. Baseado livremente no livro O Doce Veneno do Escorpião, o filme Bruna Surfistinha teoricamente seria um retrato cine-biográfico de Raquel. Mas a sensação que fica é a mesma de um cliente mais atento: a de ter visto uma performance. Interessante, sem dúvida, mas falsa em essência.
A história do filme é velha conhecida: Raquel (interpretada pela Deborah Secco) é uma adolescente de classe média desajeitada, tímida e nada popular. Um dia ela resolve sair de casa e para sobreviver, começa a trabalhar num prostíbulo, também conhecido como casa de massagens. Ali ela é introduzida (!) ao mundo da prostituição pela cafetina (ou administradora de puteiro) Larissa (Drica Moraes). De uma estranha no ninho, num primeiro momento, a uma das mais requisitadas putas do bordel depois, ela convive e divide a casa/puteiro com várias colegas de profissão, entre elas se destacando Janine (Fabiula Nascimento), a típica antagonista-num-primeiro-instante-mas-depois-amigas, e Gabi (Cristina Lago), a melhor amiga por bastante tempo. E claro, conhece também vários clientes, entre eles o generoso, e constante na vida dela, Huldson (Cássio Gabus Mendes).
Depois de um desentendimento na casa de massagens, Bruna se converte numa freelancer, ou seja, sem cafetão ou cafetina. Num flat alugado, ela atende seus clientes, que são trazidos a ela especialmente por seu blog, onde ela conta o seu dia a dia como prostituta e dá notas aos programas. O blog torna-se cada vez mais conhecido, a ponto dela se tornar uma celebridade (mesmo que da Internet).
Bruna Surfistinha, o filme, tem bons méritos e igualmente grandes defeitos também. Começando pela parte positiva, a primeira coisa que salta aos olhos é a qualidade das interpretações. Deborah Secco atua num nível alto, muito longe do que geralmente estamos acostumados a ver da estrela global na telinha. Aliás, todo o núcleo do bordel está excelente, mas como o destaque é a Surfistinha, é em Deborah que cai a maior responsabilidade. Do começo do filme, como uma adolescente desajeitada e sem o menor sex appeal (como mostra a até engraçada cena de introdução na frente de uma câmera caseira), à dona de si Bruna Surfistinha, em nenhum momento Secco parece não ser o que demonstra na tela. De fato, a atuação dela é a melhor coisa do filme. E talvez em segundo lugar, o seu corpo delineado e esculpido.
O que nos leva ao inevitável comentário sobre as cenas de sexo, que graficamente se situam um pouco abaixo de filmes soft porn (do estilo daqueles do saudoso Cine Band Privê), especialmente pela edição dos planos de sexo, que sempre mostram corpos nús (mas sempre escondendo as genitais), mas sempre com cortes rápidos, de maneira que o espectador veja e perceba a nudez e o que os personagens ali estejam fazendo nús, mas quase sem explorar o ato em si. Perceba que os fetiches mostrados, como por exemplo a chuva dourada (fetiche de mijar/ser mijado) se encaixam nisso. Eles são mostrados, mas rapidamente, pra chocar apenas de leve o espectador (e consequentemente, fazer burburinho), nunca em demasia a ponto de provocar repulsa o suficiente para os mais sensíveis sairem da sala. A exceção dessa montagem de disso se dá em dois momentos, no primeiro programa dela (com Huldson) e no que provavelmente foi o primeiro programa dela em que ela gozou de verdade. A primeira cena é quase não erótica, focando mais no rosto de Deborah Secco, em que na narração ela diz que ali nascera a Bruna, enquanto a segunda cena citada segue o estilo erótico-sexo-de-filmes-americanos.
Outro ponto positivo do filme Bruna Surfistinha é a direção de arte. Se você, pessoa recatada que nunca entrou numa dessas "casas de massagem", mas tem uma curiosidade grande pra saber como é, quiser saber como é um desses "pardieiros", vendo o filme, terá uma ideia muito, mas muito próxima da realidade. O puteiro onde Raquel começa a trabalhar é bem realista. Sim, eu sei do que falo. Além da direção de arte, o figurino também trabalha bem, pontuando visualmente a transformação da "patricinha" adolescente em mega-star da prostituição.
Um ponto potencialmente controverso é quanto às cenas de sexo e fetiche, que mesmo não sendo extremamente provocantes (como já disse acima), ainda assim mostram grande parte da fauna sexual existente. Ao mesmo tempo em que pode-se parabenizar o diretor Marcus Baldini (estreante em longas) por seu enfoque, bem divertido aliás, pode-se acusá-lo de não ter tido coragem pra explorar mais a fundo esse potencial picante, que deve ter sido a causa do sucesso do livro (eu apenas li alguns trechos enquanto enrolava na livraria, no século passado, e achei que o principal era mesmo a sexualidade ali contida, pelo menos nos trechos que li).
O ponto fraco do filme Bruna Surfistinha é o roteiro. E isso é um ponto fraco muito forte, por assim dizer. Apesar de mostrar um pouco a dinâmica de Raquel com a sua família, nunca é verdadeiramente mostrado o que levou a garota a fugir de casa. O próprio fato de que ela era adotada é jogado de maneira tão banal que deixa o espectador na dúvida se essa informação explicava ou não o que ele vira até então (e não, não explica). De fato, o filme até tenta encontrar uma explicação de porque Raquel fugiu de casa, mas o resultado é tão mal explicado e artificial que é impossível de engolir(!), como na cena em que Raquel liga para a casa dos pais de madrugada enquanto uma narração tenta dar uma explicação do porquê ela ter feito aquilo.
Bem, como disse no começo, prostitutas quase sempre são apenas personagens. A interseção entre a prostituta-personagem e a mulher-real nunca é inteira. Assim, a real motivação, ou a falta desta, ainda é passável num filme desses. O que fica mais difícil de relevar é vontade do roteiro em construir um filme de superação, em que a mocinha fez o que fez apenas por causa das circunstâncias e não por suas próprias escolhas. Talvez seja por isso que as passagens pelos filmes, desta vez com o adesivo XXX (pornográficos) não tenha sido sequer mencionado.
Outro ponto inverossímil demais, e que claramente está no filme para fazê-lo mais palatável (pra ter um mocinho e um "final feliz") é o personagem de Cássio Gabus Mendes. Seu personagem, Huldson, é o primeiro cliente de Bruna, e tenta dar a impressão de que ele será o último. (Spoiler até o final do parágrafo se você não nunca leu nada sobre a Bruna Surfistinha em época nenhuma.) No "final da vida real", Bruna se retira dessa vida de prostituta e vai viver com um cliente, que não é revelada a identidade. No filme, apesar de não ser dito, tenta-se passar a impressão de que esse cliente é o personagem de Gabus Mendes. Ou seja, o príncipe encantado é aquele que esteve sempre ao lado dela, num clichê covarde (por não se assumir) que dá pena e que lembra a mais batida das comédias românticas.
Na minha opinião, ainda sobre o personagem de Gabus Mendes, creio que ele é um amálgama de vários homens que passaram pela cama (e outros lugares) da protagonista.
Enfim, Bruna Surfistinha, o filme, é como um show. Daqueles que tentam se passar pela vida real, misturando pitadas de realidade com outras inventadas, mas que não conseguem enganar a todos. Mesmo assim, como entretenimento, é válido. Então, não tente tirar significados profundos ou tentar enxergar a vida de Raquel Pacheco neste filme. No máximo, você verá parte de Bruna Surfistinha, uma personagem no filme dentro da personagem de Deborah Secco (meio Inception, isso). Interessante, e que como prostitutas, te entretêm por algum tempo em troca do seu dinheiro. A diferença é que o final do filme não sai gozado.
Trailer:
Para saber mais: crítica no Cinema em Cena e no Omelete.
já ouvi dizer q esse é o papel da vida da secco.
ResponderExcluirPensando no começo do seu texto...acho que acontece o mesmo com as jornalistas..rs.. só que por motivo inverso. A gente adota um nome de guerra para sair do personagem "jornalista" e ser a gente mesmo. "Adoramos" assumir a profissão, mas, não nossas posições pessoais. Mas, igualmente às prostitutas o "nome de guerra" também serve como proteção, defesa psicológica. Coisa de doido né?
ResponderExcluirrs rs rs Sua resenha (além de ótima pelo filme) está absolutamente freudiana... !!! gostei! ;)
vou ver o filme quando sair em vídeo...
sozinha não encaro Bruna Surfitinha no cinema..rs
beijos,
Assisti ao filme e seu post reflete a minha opinião com relação a toda a história.
ResponderExcluirGostei bastante!
Abraços.
O texto é ótimo, mas o final... Ri aqui! rs
ResponderExcluirQuer deixar de ser telespectador e se tornar ator. Venha conhecer uma de nossas Brunas Surfistinhas!
ResponderExcluirhttp://www.casademassagem.net