Mas voltando ao livro O Outro, o que me fisgou foi a sinopse contida na orelha do livro, que reproduzo abaixo:
Após a morte da esposa, Bengt tenta se acostumar à vida solitária, desenvolvendo novos hábitos. A rotina é até reconfortante em certos aspectos: manter a casa limpa, se alimentar, verificar o correio. E justamente algo tão corriqueiro quanto buscar a correspondência será capaz de mudar sua vida para sempre.
A carta parece ser de um amigo desavisado, que não recebeu o convite do funeral. Já ensaiando o comunicado do falecimento, Bengt abre o envelope: uma caligrafia trabalhada, a assinatura de um homem, palavras de amor para Lisa, sua falecida mulher.
Será que durante todo o tempo em que foram casados, Lisa tinha um amante? Como ele nunca desconfiou? Bengt percebe que talvez os fatos não sejam o que parecem. Determinado a descobrir a verdade e a não deixar que esse incidente destrua a memória da esposa, ele começa a se corresponder com o estranho usando o nome dela.
A cada nova carta, ele se surpreende com detalhes sobre a personalidade de Lisa que negligenciou durante muitos anos. Sua generosidade, o quanto foi feliz e fez os outros rirem. As cartas de Outro são seu maior consolo, e conforme percebe o quanto têm em comum, Bengt não resiste à tentação de conhecê-lo. Quem seria o homem que sua esposa um dia amou? Quem, ou qual deles, seria o Outro?
Como o livro estava bem barato, em promoção (uns 17 reais, na época, se me lembro bem), e é bem curto (menos de 100 páginas, e escrito com letras quase garrafais), resolvi comprar, pois a minha fila de livros a serem lidos só cresce.
Eu gostei do livro. A história é bem interessante, mas um porém é que o autor é bem seco, direto ao ponto. Por isso, o desenvolvimento é bastante rápido, ficando um gostinho de 'quero mais detalhes', além da nítida impressão de que tudo poderia ter se desenvolvido em outro ritmo, tornando o livro verdadeiramente uma obra rara. Do jeito que está, parece mais apenas um (bom) conto.
Enfim, eu gostei do livro, o tema da traição, ou melhor, da dúvida, que é o verdadeiro foco, é bem explorada. Vale a pena ler, especialmente se o seu tempo de leitura anda escasso.
E assim como O Leitor, o livro O Outro também foi adaptado para o cinema. Aqui no Brasil o filme foi chamado de O Amante. Ainda não assisti, mas pelo elenco de peso, parece ser bom (Liam Neeson no papel principal, do marido, que no filme tem outro nome, Antonio Banderas como o Outro e Laura Linney como Lisa). As imagens deste post são do filme.
Abaixo, três citações do livro, com trechos destacados por mim:
Vivendo sozinho novamente:
Quando se lembrava da intimidade entre ambos, sua culpa emudecia, dando lugar a um mal-estar. Teria ele se iludido? Teriam mesmo sido tão íntimos assim? O que faltara? A vida a dois não era boa? Afinal, haviam dormido juntos até ela cair gravemente doente, haviam conversado até ela morrer.
O mal-estar também acabou se dissipando. Muitas vezes, ele teve a sensação de um vazio, mas sem saber o que lhe faltava. Nesses momentos, mesmo que para ele fosse inimaginável tirar a prova dos nove, perguntava-se se efetivamente sentia falta de sua mulher ou simplesmente de um corpo quente na cama, de alguém com quem pudesse trocar algumas palavras e que achasse suas conversas razoavelmente interessantes, e que ele escutasse com interesse razoável. Também se questionava se a saudade que sentia do trabalho de vez em quando realmente tinha por objeto o seu trabalho e não um contexto social qualquer e um papel que ele desempenhava bem. Ele sabia que era lento, lento para perceber as coisas e para processá-las, lento para se envolver com alguma coisa e para se libertar dela.
Às vezes, tinha a impressão de que tinha despencado da própria vida, que ainda estava caindo, mas logo chegaria a algum lugar, lá no fundo, recomeçando do zero, modesto, mas recomeçando.
Após receber a primeira carta, a descoberta da traição, e a dúvida de tudo o que vivera até ali:
Não se lembrava de que a voz da mulher fosse estridente. Nunca passara noites e dias na cama com ela. Nunca simplesmente partira de carro ou de trem com ela. Primeiro, ficou surpreso, depois se sentiu traído e roubado; sua mulher o privara de algo que era seu ou que deveria ser seu e que outro homem roubara. Sentiu ciúmes.
Não eram apenas ciúmes daquilo que sua mulher partilhara com outro e que ele desconhecia. Como saber se ela fora uma para ele e outra para o Outro? Talvez ela tivesse sido para o Outro aquela que fora para ele. Às vezes, Lisa e ele assistiam a um concerto e suas mãos se tocavam porque ambos gostavam da peça. Havia vezes em que ele a observava se maquiar de manhã e ela lhe devolvia um pequeno olhar e um pequeno sorriso antes de voltar a fitar a imagem no espelho, concentrada. Havia vezes em que ele acordava de manhã e se aconchegava a ele, ao mesmo tempo que se espreguiçava. Ou vezes em que ele lhe contava algum problema do trabalho e ela parecia nem escutar para, horas ou dias depois, surpreendê-lo com uma observação que evidenciava sua atenção e seu envolvimento. Todas essas situações revelaram a intimidade da vida conjunta. Uma intimidade que ele sempre compreendera como sendo sua, exclusivamente sua. Mas agora nada daquilo lhe parecia natural. Por que ela e o Outro não poderiam ter tido a mesma intimidade? Por que ela e o Outro também não teriam ficado de mãos dadas durante um concerto, por que ela não teria sorrido para o Outro ao se maquiar, por que ela também não teria se aninhado no Outro, espreguiçando-se ao mesmo tempo?
E por fim...
Reconhecendo o amor que sentia por Lisa:
O Outro fez uma pausa. Teria ele assistido à peça na noite antes do primeiro encontro? Nas turnês mais longas da orquestra, geralmente o quarteto formado pelo spalla com Lisa, a viola e o violoncelo também se apresentava. Teria ele assistido a ela, apaixonando-se por ela? Apaixonara-se porque ela, aquela mulher delicada, tocava com tanta força, clareza e paixão que ele sentiu necessidade de absorver um pouco daquilo? Era assim que ela tocava. Quando ainda se conheciam pouco, ele sentira a mesma coisa. Depois, deixara de notar. Depois, Lisa era a sua esposa que tocava na primeira estante do segundo violino e muitas noites não estava em casa ao seu lado, embora precisasse dela e embora nem ganhasse muito dinheiro.
O Outro não embelezara Lisa com suas palavras. Simplesmente enxergara a maravilhosa violinista que era. Para ele, não tinha importância se ela era solista, se tocava o primeiro ou o segundo violino, se era mais ou menos bem-sucedida ou famosa. Ele não dizia coisas bonitas, ele encontrava coisas bonitas, encontrava beleza onde outros a escondiam ou não enxergavam e usava os atributos que os outros utilizavam para expressar a sua admiração para expressar a sua própria. Se os outros só podiam conceber uma violinista maravilhosa se ela era famosa, então ele precisava se referir à violinista maravilhosa como famosa.