O encontro de duas pessoas bem diferentes entre si, mas que acabam sendo importantes uma para a outra de variados modos, é um tema recorrente em filmes (e coincidentemente, recentemente falei sobre um desses filmes,
Minhas Tardes com Margueritte). Aliás, coincidências parece ser um dos fetiches de
Stefano Pasetto, diretor e co-roteirista da produção argentino/italiana
A Viagem de Lucia (ou no original,
Il richiamo).
Como o título brasileiro sugere, o filme é protagonizado por
Lucia (
Sandra Ceccarelli), apesar de não podermos dizer que a outra personagem,
Lea (
Francesca Inaudi), seja coadjuvante. Bem, Lucia é uma mulher na meia idade que trabalha como aeromoça e é casada com um médico. Apesar disso, Lucia sofre frequentemente com a saúde, até mesmo impossibilitando o sonho de ser mãe. Angustiada e se sentindo infeliz e pressionada, Lucia descarrega parte de seu fardo em folhas de um caderno, em que escreve alguma coisa e imediatamente rasga a folha, amassa e joga. Depois de um aborto espontâneo, Lucia volta a um antigo trabalho, de professora de piano.
E é quando ela conhece
Lea (
Francesca Inaudi), uma jovem aberta, independente, mas que é carente pela figura paterna (que lhe dá migalhas de atenção a cada telefonema espaçado, que ela espera com ansiedade), e que trabalha num matadouro de frangos (e que por isso, literalmente cheira a galinha), mas espera ser chamada para trabalhar com animais na Patagônia. E é quando isso acontece que Lucia se entrega a paixão por Lea, protagonizando uma bela cena de sexo lésbico. Não uma cena à la Hollywood, mas uma cena mais real, sem música de fundo, sem posições de câmera (e de corpos) parecendo um ensaio padrão, mas com direito a imagens dos corpos das duas belas mulheres se entrelaçando sem photoshop, até mesmo mostrando uma eventual celulite (o que torna a cena ainda mais real, e portanto, mais excitante).
A Viagem de Lucia é interessante (qualquer um que não achar um filme com cenas de sexo entre mulheres interessantes, por favor, ALT+F4), mas tem alguns problemas. Vários, eu diria. Talvez por se tratar apenas do segundo longa do diretor Pasetto, o filme sofre com uma enxurrada de boas ideias que não se concretizam, o que é típico de diretores iniciantes ou fora de forma (afoitos, parece que eles querem colocar todas as suas ótimas ideias no filme, mas por serem muitas, acabam não se desenvolvendo e ficando "largadas", o que não é bom). E talvez quem mais fora com isso seja a personagem Lea. Tomem como exemplo a mão com cicatrizes de queimadura dela, o choro copioso ao se lembrar da mãe (e nessa hora, acariciando a mão queimada), o que isso contribui para a história ou o desenvolvimento da personagem, já que não é explicado de forma satisfatória o porquê disso? Se alguém entendeu, me explique por favor. Fora que essa marca nas mãos parecia ser algo significativo, já que até mesmo nas primeiras aparições de Lea com seu namorado (tatuador) o diretor foca na mão dela. E aliás, falando no namorado inicial de Lea, qual o significado das cenas em que ele é mostrado com um gatinho? Seria o de enfatizar que ele estava solitário? De que ele não vive bem sozinho? E, o mais importante, seria isso relevante para o resto do filme? (A resposta é não). Outra personagem que surge na história e que parece que será importante, mas depois some, é a senhora na Patagônia que queria aprender piano. Depois de oferecer alugar um lugar decente para Lucia (e lhe ensinar uma lição sobre verdade*), a senhora simplesmente nunca mais dá as caras.
Outro problema de
A Viagem de Lucia são as pequenas coincidências que o roteiro coloca, como se estivesse dando a entender que haveria ali algo de destino, predestinação. Nada contra esse recurso, se bem usado, eu acho acho interessante. O problema é usar desse recurso, mas não assumir o filme como acreditando nisso. Foi por isso que eu disse, lá no primeiro parágrafo, que o diretor tinha um fetiche por coincidências. São várias as coincidências espalhadas pelo filme. Reparem no nome que Lea dá à melancia que carrega como se fosse um bebê: Lucia. Ou quando Lucia casualmente vê Lea em uma ótica experimentando óculos e por um momento, num espelho bipartido, foca-se o rosto de Lucia e Lea. Ou ainda quando o marido de Lucia brinca com um barquinho de papel, desconsolado, e depois logo corta para Lucia no barco na Patagônia, para onde ela foge (e empreende a sua viagem).
Com diálogos econômicos,
A Viagem de Lucia não se preocupa em explicar tudo nos mínimos detalhes para o espectador. O filme tem alguns saltos temporais que se o espectador não estiver atento, vai se perguntar o que houve. Nada, entretanto, muito complexo.
Sem dúvida, o ponto alto do filme são as interpretações de suas protagonistas. Com uma sensibilidade visível, Ceccarelli e Inaudi se entregam a suas personagens Lucia e Lea. O elenco de apoio também não faz feio, mas o show é realmente das duas mulheres, em especial, de Ceccarelli. Isso porque apesar do filme começar com um igual destaque para ambas as mulheres, da metade para o final, o foco se concentra em Lucia (o que eu considero um defeito, uma vez que sub-aproveitou-se o potencial da personagem Lea).
Apesar dos seus defeitos,
A Viagem de Lucia tem ótimos momentos, como a velhinha de cabelo azul (e nem preciso citar a cena de amor entre Lucia e Lea, certo?). A fotografia do filme tem seus bons momentos, especialmente quando as personagens estão na Patagônia (apesar de alguns planos parecerem mais apropriados para o National Geographic). E não sei se foi um feliz simbolismo ou não (espero que tenha sido), mas reparem nos planos que estabelecem Buenos Aires como palco da primeira metade do filme. Em quase todos os planos, mostra-se o Obelisco de Buenos Aires. Interessante, não?**
Trailer:
* A lição é até bacana, e por isso reproduzo aqui. Numa conversa entre Lucia e
Matilde (
Hilda Bernard), a tal senhora, Lucia solta um "na verdade, bla bla...", no que a senhora lhe diz algo como "A verdade parece ser algo muito importante para você". E então, com aquele olhar de senhorinha que já viveu muito e está diante de uma jovem inexperiente, ela diz que "a verdade é só um instante e por isso, insignificante."
**O obelisco, é um símbolo fálico, por natureza. Um grande e ereto pênis apontando para o céu. E, no filme, as protagonistas depois de descobrirem o seu amor, fazem o que? Vão para Patagônia, deixando para trás os seus respectivos companheiros. Em Buenos Aires. É uma pena que eu não reparei se tem algo semelhante a isso nos planos na Patagônia, mas desta vez, simbolizando o feminino. (Robert Langdom feelings.)
Para saber mais: crítica no
Cineclick e no
Cinema na Rede.