Magia não existe, tampouco magos (não confundir com mágicos, que são ilusionistas). Essa afirmação, que tem um pé na nossa realidade, é um dos pontos centrais da belíssima animação francesa O Mágico (ou L'illusionniste no original). Paradoxalmente talvez, o filme é um representante legítimo daqueles que associamos à magia do cinema. Ou nem tão paradoxalmente assim, já que a "magia", tanto do cinema quanto dos truques de ilusionismo, é remeter o espectador a um mundo a parte, em que por alguns momentos, o impossível pode acontecer, em que a realidade pode ser um pouco diferente.
O Mágico é uma animação adulta, um tanto melancólica. Apesar do filme adotar uma linguagem universal, crianças pouco entenderão e apreciarão a história, mesmo com os momentos de alívio cômico, protagonizados especialmente pelo coelho rabugento que o velho mágico usa no truque da cartola. A linguagem do filme é essencialmente visual. Os diálogos são raros, e a maioria soa como grunhidos mais ou menos como a professora de Charlie Brown e cia no desenho do Snoopy (Peanuts) fazia. Ou seja, a ênfase da mensagem é passada no tom e não nas palavras propriamente ditas, apesar das falas serem distinguíveis e inteligíveis (lembro de algumas falas em inglês e umas poucas em francês que consegui entender). Para a maioria de nós, espectadores não multilíngues, essa opção da linguagem predominantemente visual é reforçada ainda pela não presença de legendas (pelo menos, na cópia em que assisti). Um parêntense: isso me faz pensar que esse seria um filme horrível de ser assistido por críticos de cinema cegos como Tommy Edison, o Blind Film Critic, hehehe.
O Mágico do título é um velho e já cansado mágico veterano dos palcos. Sendo frequentemente preterido em relação a shows mais joviais, como uma banda de rock à la quatro bretões de Liverpool, o velho mágico embarca em uma jornada de apresentações itinerantes. Ao se apresentar em uma pequena estalagem num pequeno vilarejo na Escócia, o mágico conhece uma jovem empregada que se encanta com seus truques, achando que realmente o mágico consegue tirar moedas das orelhas das outras pessoas e coisas assim, enfim, achando que a magia é real, ainda mais quando o mágico compra para ela sapatos novos como agradecimento por ela ter lhe lavado as roupas e a presenteia com os sapatos como num passe de mágica. Quando ele parte, a jovem vai atrás dele escondida. O mágico acaba meio que adotando a mocinha, levando-a a uma cidade grande onde ele fará mais shows. Entretanto, na cidade, a moça do interior conhece outro mundo (especialmente o consumista), e para não deixar a "magia" morrer, o velho mágico faz o que pode.
Apesar de O Mágico ter uma crítica ao capitalismo consumista, sobretudo na visão da moça sempre querendo algo mais, ela não é uma crítica cheia de ressentimentos, mas uma visão de como as coisas realmente funcionam: sapatos novos e roupas velhas não combinam e chamam a atenção dos outros, então você passa a cobiçar um casaco novo, digamos. Mas este não combina com o vestido velho, e assim por diante. Nesse sentido, a crítica não é amarga, mas triste, ao vermos como uma "alma inocente e pura" vai se contaminando com a ânsia de possuir algo mais, especialmente ao notarmos que é exatamente esse processo que alimenta o consumismo infantil (dentre outras coisas). E como o próprio filme faz questão de mostrar, esse é um processo autosustentável, ou seja, o padrão só tende a se repetir, como mostra a cena em que a mocinha protagonista já toda bem vestida passa por uma outra moça recém-chegada, que se vestia exatamente da forma como ela se vestira no começo, e então essa nova moça é atraída pela vitrine.
Além disso, a animação ainda critica o sistema capitalista, de maneira mais sutil, ao mostrar o velho mágico se apresentando numa vitrine de loja para vender mercadorias, numa ação de "marketing de guerrilha". Neste caso, a crítica é o quanto se vender para conseguir dinheiro, ou seja, até que ponto alguém está disposto a ir (no caso do mágico, de tornar mundana a sua arte) para conseguir um salário (e em última instância, bancar a sobrevivência dele e da jovem e seus pequenos caprichos).
Entretanto, O Mágico não apenas critica o capitalismo e o consumismo. A animação também envereda pela discussão do novo versus o antigo. O ventríloquo vizinho do mágico e da moça no hotel é um exemplo disso, ao não conseguir se adaptar a novos tempos e acaba que seu boneco termina em uma loja de penhores, a ser vendido cada vez mais barato, porque ninguém mais o quer. O próprio mágico é outro exemplo disso, sendo substituído pela nova atração de rock, voltada a um público mais jovem. Isso é demonstrado de maneira genial na apresentação do mágico em Londres, quando ele fica muito tempo esperando para se apresentar (porque a banda se apresentava antes) e quando ele finalmente sobe ao palco, apenas uma ou outra idosa o assiste com ânimo. Ainda sobre essa cena, a demora é mostrada de maneira genial, intercalando o mágico esperando a sua vez e imagens que denotam a passagem de tempo numa Londres chuvosa, como o Big Ben tocando, ou a troca de guardas da rainha. Outro ponto a ser destacado é a ambientação: cada cidade pelo qual o mágico passa é retratada de maneira belíssima, mesmo quando não deixa de ser triste (como uma Londres chuvosa ou as "highlands" escocesas envoltas em neblina).
Visualmente impecável, O Mágico ainda tem uma trilha sonora e uma edição de som excelentes, o que era de se esperar de um filme com pouquíssimos diálogos (afinal, o silêncio absoluto só iria deixar o espectador desconfortável). Reparem como a música acompanha o ritmo da história e dos personagens. Por exemplo, a música que toca na viagem de ida a Escócia é bastante triste, o que combina com o momento vivido pelo mágico, que vinha de apresentações fracassadas (do ponto de vista de que ninguém prestava realmente atenção nele). Na viagem de volta, a música assume tons mais alegres, o que combina com o ânimo renovado do mágico, por ter se apresentado em um lugar em que a sua arte fora valorizada.
O Mágico contém um lirismo e uma melancolia bem marcantes. Os personagens de circo - o mágico, o palhaço e o ventríloquo que vivem no hotel - são representantes de uma época em que sonhos eram mais palpáveis e não diretamente ligados ao limite do cartão de crédito. O lirismo de O Mágico não deixa passar a ironia da tristeza do palhaço, que como na piada, sofre de depressão (e tendências suicidas!) e não tem quem o faça rir, afinal, ao lavar o rosto (mesmo que seja com a água da flor da lapela), ainda restará por baixo um rosto triste. E o design dos personagens nesse sentido é fabuloso: o palhaço triste com cara de palhaço mesmo sem maquiagem, o ventríloquo, o próprio mágico, todos eles refletem no design, suas personalidades e papéis na trama, de maneira fluída e nada artificial.
Já disse que o visual de O Mágico é impecável, e o estilo de animação, 2D, combina perfeitamente com a proposta do filme, da passagem de gerações. Afinal, se o mágico é da velha guarda, nada mais justo que retratá-lo com uma técnica mais antiga, mas que nem por isso, produz resultados inferiores. E mesmo no momento em que a animação usa de recurso de CGI, no plano em que a câmera gira em torno da cidade, a animação mantém o estilo, fazendo com que a tomada seja bela e sem destoar do resto da animação.
Com um apuro visual inegável, um carinho enorme pelos personagens e seus desenvolvimentos, uma trilha sonora que se encaixa perfeitamente e um cuidado com os pequenos detalhes (reparem como as flores que a mocinha colheu no início da vida no hotel ficam no final, ao lado dela belamente vestida), o diretor Sylvain Chomet, baseado num roteiro de Jacques Tati, faz O Mágico terminar com a mensagem que magia não existe e que a realidade pode ser um tanto dura. Eu discordo da primeira parte, pois o próprio filme é um exemplo de que magia pode existir sim. Pelo menos por uns 90 minutos numa sala escura com um projetor.
Trailer:
Para saber mais: crítica no Cinema em Cena e no Omelete.
Um comentário:
uau,
isso que eu chamo de propaganda do filme... depois dessa, impossível não querer assisti-lo! :)
Postar um comentário