Quem acompanha este blog, já deve ter percebido que eu gosto de artes e manifestações artísticas em geral. Uma das ramificações da arte que eu gosto, mas que não transparece por aqui, são aquelas pinturas renascentistas, cheias de detalhes, significados, simbolismos e histórias escondidas (mas visíveis). Se, assim como eu, você gosta de saber ou mesmo imaginar a história por trás dessas obras, deve adorar o filme O Moinho e a Cruz (ou no original The Mill and the Cross). Sem dúvida, eu adorei.
O filme O Moinho e a Cruz, baseado em um romance histórico de mesmo nome (não lançado por aqui e escrito por Michael Francis Gibson, que também co-escreve o roteiro), imagina o que o artista Pieter Bruegel (interpretado no filme por Rutger Hauer), deve ter visto e presenciado para pintar A Procissão ao Calvário. A tela, pintada a óleo em 1564, é povoada por diversos personagens, mas tem em seu cerne a procissão de guardas e aldeões acompanhando o calvário de pessoas sendo levadas para execução, com claras referências religiosas. Não me aprofundarei na análise, nem na descrição da pintura, já que isso seria dar spoiler, uma vez que é este o tema do filme, e recomendo muito assisti-lo.
O Moinho e a Cruz a primeira vista, causa impacto e é bem peculiar. Um dos motivos é a sua fotografia, que usa muito chroma key (o famoso fundo verde no qual são projetados imagens). O efeito do chroma key, por melhor que seja, geralmente é notado pelo olhar. No caso de O Moinho e a Cruz, esse efeito não é disfarçado, ao contrário, é exacerbado. Isso porque a o que é projetado no fundo é uma mistura de um cenário pintado (à la arte de Bruegel, muito bem feito, aliás, com as cores, saturação e contraste impecáveis), com atores. É como se na tela mostrasse a pintura, tendo alguns elementos substituídos por imagens reais (sobretudo os atores), nas cenas que se passam no ambiente retratado na Procissão ao Calvário, em diferentes graus de profundidade.
E isso já é visto logo na cena inicial, que basicamente recria a tela usando essa técnica, onde é mostrado Bruegel arrumando algumas pessoas em primeiro plano, enquanto atrás é mostrado a projeção no chroma key, com o cenário pintado e alguns atores pré-gravados, enquanto a câmera lentamente desliza para a esquerda, simulando o olhar do espectador num quadro grande e com tantos detalhes (A Procissão ao Calvário é a segunda maior tela do artista, com 1,7 m de comprimento).
A escolha deste estilo visual remete ao espectador a constante lembrança de que o que ele vê na tela é um universo ficcional. Ao contrário do que isso possa soar, isso não diminui o filme. Essa constante lembrança é um dos charmes do filme, que não nos faz esquecer da sua origem, que é a interpretação de uma pintura. Neste sentido, o filme pode desagradar os que procuram uma imersão maior apenas no enredo da história.
O outro aspecto peculiar de O Moinho e a Cruz são seus diálogos, ou a falta deles. Para se ter uma ideia, passam-se vários minutos antes que algum diálogo seja falado. Isso só reforça a intenção do filme, já exacerbada pela fotografia, em ser como uma pintura. Afinal, num quadro só conta-se com a imagem para passar qualquer mensagem. E o filme é bem eficaz neste quesito. Apesar de no início nos sentirmos um pouco perdidos no contexto (especialmente se como eu, o espectador não souber nada do filme, ao contrário de você, leitor, que já leu até aqui), logo os poucos diálogos conseguem explicar, de maneira sucinta, todos os pontos que poderiam levantar dúvida.
As poucas falas pertencem principalmente a Hauer e seu Bruegel, que de maneira didática, mas não extremamente for dummies, explica os elementos da pintura que planeja. Além do protagonista, apenas Michael York interpretando Nicolaes Jonghelinck (o colecionador que provavelmente encomendou a pintura e a comprou) e Charlotte Rampling como Maria têm falas relevantes.
Com um design de produção eficiente, o filme também é interessante ao retratar o dia a dia de uma pequena comunidade, basicamente rural, no final da idade média/início do renascentismo. Cheio de simbolismos, as cenas dentro do moinho, por exemplo, são visualmente impressionantes, mostrando o imenso moinho por dentro, com suas enormes engrenagens e a longa escada até o topo do moinho (e a grandiosidade do moinho tem a ver com o seu simbolismo como Deus na pintura, inclusive com a enorme escada até o topo me lembrando a famosa música Stairway to Heaven). Além disso, é interessante também o simbolismo do moinho como o Deus-pai-provedor ao enfatizar seu papel moendo os grãos e formando a farinha, que serve como pão e alimento.
Dirigido e co-roteirizado por Lech Majewski, O Moinho e a Cruz tem como grande diferencial, a princípio, a origem inusitada (transpor para um filme, interpretações das histórias contidas numa pintura). Some-se a isso a fotografia interessante e até mesmo valente, os simbolismos adjacentes e a explicação da pintura de maneira eficaz (sem parecer uma aula chata e nem muito condescendente), e obtemos um grande filme. Diferente, inusitado, sem dúvida. Talvez até com a tacha de experimental. Mas, sem dúvida, uma obra de arte. Das boas.
Mais sobre Pieter Bruegel na Wikipedia e sobre o quadro A Procissão ao Calvário (ambos em inglês). Link direto para a pintura: via wikimedia.
Trailer:
Para saber mais: crítica no Omelete.
Um comentário:
Nossa, o seu post me despertou grande interesse para esse filme. Aliás, a técnica do fundo estilo pintura me lembra bastante Hoje é dia de Maria (2004), que também mantém a artificialidade evidente como forma de transporte para um outro mundo, o qual, depois a gente descobre, não é tão diferente assim do nosso.
Vou ver e, se não gostar, volto pra pedir meu dinheiro de volta!
:p
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