Então, comecemos pelo o que o filme nos conta. Natalie Portman é Nina, uma bailarina já há alguns anos, que vê na aposentadoria forçada da primeira bailarina do seu grupo Beth (Winona Ryder), a chance de ascender. Mas para isso, ela deve conseguir o papel principal da nova montagem do diretor Thomas (o ator Vincent Cassel, que bem poderia interpretar o Caco Barcelos). Thomas pretende montar o clássico O Lago dos Cisnes, com apenas uma bailarina interpretando o papel principal, de rainha cisne, que incorpora tanto o cisne negro quanto o branco da história original (leia mais sobre a história da peça no link da wikipedia).
Entretanto, para Nina, o papel apresenta dificuldades, pois apesar dela ser inicialmente a personificação do cisne branco, com atributos como pureza, inocência e castidade, sempre procurando alcançar o que imagine ser a perfeição no balé, o papel de cisne negro exige uma lúxuria, uma volúpia espontânea, uma sensualidade natural e selvagem que não são naturais a ela. Nina mais parece uma bonequinha (e o físico de bailarina ajuda nesse sentido), envolta pela mãe super-protetora e ex-bailarina Erica (Barbara Hershey). Além da pressão pelo papel na peça, Nina ainda vê surgir Lily (Mila Kunis), uma bailarina que, se não tem a técnica apurada, lhe sobra espontaneidade e sensualidade na dança. Com tudo isso, Nina, que já não era a pessoa mais equilibrada do mundo, começa a surtar, criando em seu íntimo uma viagem à esquizofrenia, vendo e sentindo coisas que podem ou não ser realidade, despedaçando-se entre o branco e o negro (o que inevitavelmente leva a uma área cinzenta).
Essa dicotomia entre o preto e o branco, trevas e luz, dá o tom no filme. Aronofsky já nos mostra isso na primeira cena, em que uma câmera acompanha os pés e os passos de uma bailarina dançando num cenário escuro, com uma única fonte de luz marcando uma parte do chão. Nesta dança, a bailarina ora pende para o escuro, ora para a luz, até que a câmera, que estava focada apenas nos pés e sapatilhas, vai subindo até nos revelar a protagonista Nina. Reparem que, com uma única cena inicial, o diretor consegue vários feitos. Primeiro, ele além de nos revelar sobre o fio condutor da trama, o balé, nos revela o embate entre o branco (luz) e o preto (trevas) que se seguirá. Segundo, ele consegue nos apresenta a protagonista dançando, e o peso de mostrar a própria atriz bailando nos ajuda a imergir no universo do filme, afinal, quem está na tela acaba não sendo a atriz Natalie Portman, mas a bailarina Nina.
Reparem também nos figurinos de Cisne Negro, que reforçam essa dicotomia. Nina sempre usa roupas brancas ou claras (especialmente rosa), enquanto sua mãe, que representa de certa forma uma antagonista, usa sempre preto. Ou mesmo Lily, que na primeira cena que surge, no metrô, é quase um clone da personagem Lily (muito devido ao físico também), com exceção das roupas escuras. Essa caracterização serve perfeitamente à história, pois a personagem de Portman, até certo ponto, é a imagem estampada da pureza e virgindade (o que a torna meio chata também, como todo ser "perfeito" e puro).
Aliás, a caracterização dos personagens está excelente, claro que com destaque para Natalie Portman. Além de ter aprendido balé, sua atuação é surpreendente, não sendo à toa os prêmios que ela ganhou. As cenas com Thomas são ótimos exemplos da excelente atuação da atriz. Quando Nina vai a Thomas pedir para ser a escolhida, por exemplo, a caracterização da personagem já mostra uma certa falta de equilíbrio de Nina. Ao mesmo tempo em que se produz toda para esse encontro (claramente numa tentativa de sedução, mesmo que a maquiagem acabe ressaltando uma certa infantilidade, ao ser exagerada, como uma pessoa sem experiência para tal), suas atitudes são ingênuas, até inocentes. Seu tom de voz é quase um sussurro, seu físico pequeno e magro (ela emagrecera para o papel) a fazem parecer uma bonequinha frágil, e ela só consegue o papel por um rompante provocado por um Thomas "mal intencionado".
Se Cisne Negro tem em sua protagonista uma esmagadora atuação, os coadjuvantes não ficam atrás. Cassel vive um Thomas obcecado e perfeccionista, mesmo que o conceito de perfeição dele e de Nina não sejam os mesmos. Mila Kunis parece a vontade no papel, e mesmo a participação de Winona Ryder, bastante breve, é eficiente. Destaque também para Barbara Hershey como Erica, a mãe de Nina, que de maneira sutil, se mostra talvez não culpada, mas em parte responsável pela loucura da filha, tanto em termos de criação (numa bolha e sem privacidade nenhuma), quanto talvez em genética. E isso é acentuado pelo design de produção, ao mostrar o quarto dela na primeira vez.
A câmera e a fotografia de Cisne Negro são um deleite a parte. Pegue por exemplo, as cenas de dança, um pouco mais demoradas. A da introdução, a que já falei, por exemplo. A câmera se move com uma suavidade que não deixa de ser parecido com um balé. Além disso, ao se movimentar em volta e com os bailarinos, cria de certa forma, uma coreografia nova, ao interagir com a própria dança dos bailarinos, algo só possível no cinema (porque num teatro, a sua perspectiva da dança será sempre a mesma por estar sentado parado). E, como já disse, mesmo em movimento, a câmera é fluida, com poucos solavancos típicos de uma cena que deve ter sido gravada com a câmera na mão e não num apoio. Agora, compare isso com a mesma câmera na mão, quando ela segue de perto Nina, ao andar na rua, por exemplo, logo no início do filme, ao se dirigir para o balé. A câmera se posiciona logo atrás dela, mas o visual agora é mais tremido, com solavancos, colocando o espectador como que colado na atriz. De certa forma, isso deixa transparecer que iremos acompanhar de perto o que acontece com Nina (compartilhando de sua crescente loucura), mas de uma certa distância segura.
E isso acaba ficando claro em Cisne Negro, quando o filme mostra aqueles pequenos sustos, aquele clima de apreensão por não sabermos ao certo, o que se passa. São pequenos detalhes, como uma pintura que pisca para a personagem, ou a transformação momentânea dela maquiada em cisne negro num dos flashes da balada, por exemplo. O maior suspense, nesse tipo de filme, quando fica claro que a personagem está um tanto esquizofrênica, é saber o que é real e o que não é. Como esses pequenos sustos certamente não são reais (ou não!), o espectador não sente medo, o que é a distância segura dele, mas continua aquela apreensão ou angústia por saber o que, de fato, é real.
Ainda com relação à fotografia, vale citar o uso dos espelhos em cena. Uma constante para bailarinos que precisam ficar checando se o seu movimento está perfeito, os espelhos não apenas surgem nesse sentido, mas frequentemente de maneira simbólica (mesmo quando o objetivo imediato na tela seja de causar surpresa/espanto). O mais perceptível talvez seja quando os espelhos mostram várias imagens de Nina, seja no apartamento dela ao se preparar pra treinar (um conjunto de três espelhos), ou logo na entrada do apartamento, onde um espelho decorativo multifacetado mostra múltiplas faces. Com relação ao simbolismo dos espelhos, não me alongarei aqui, pois o crítico Pablo Villaça escreveu um ótimo texto sobre ele na a crítica no Cinema em Cena (para ler, de preferência, DEPOIS de ver o filme).
Outro ponto que merece destaque é o som do filme. Bem, a trilha sonora, baseada, claro, no trabalho de Tchaikovsky (o autor do balé O Lago dos Cisnes), mescla músicas do balé com outras, que, se meu ouvido não se engana (estou longe de ser um músico), são originais mas inspiradas nas do balé, como se fossem pequenas variações dessas. Outro aspecto relacionado é quanto ao som propriamente dito. Pequenos barulhos, como sussurros, pontuam o filme, reforçando o clima sombrio e de suspense, especialmente quando vemos que o "lado negro da força" começa a tomar maior forma.
Algo bastante comentado antes do lançamento de Cisne Negro (que creio que foi uma estratégia de marketing genial), foi a cena de sexo lésbico entre Portman e Kunis, (que eu só vi no cinema, não antes). Bem, a cena não é gratuita, ela faz sentido na narrativa, mas apesar das beldades envolvidas, não é tão sexy assim. Primeiro, porque não tem nada de explícito, e segundo, por causa do contexto no filme. É mais uma questão de raiva e outros sentimentos reprimidos que acabam se libertando (repare que nessa cena, Nina está vestida de preto, depois de pegar emprestada uma peça de roupa de Lily), do que apenas desejo sexual. Em termos visuais, acho a cena em que Portman se masturba muito mais sensual.
Tecnicamente impecável, Cisne Negro perde força apenas ao nos focarmos na sua história. O primeiro problema é que o filme é tratado como suspense (incluindo elementos clássicos do gênero, como alguns sustos providenciais, até mesmo um clichê de filme de terror com espelhos). Entretanto, se o alma do suspense é o mistério, o não saber, o filme se prejudica por nos avisar de antemão, que o problema está na cabeça da personagem (coisa que fica ainda mais óbvia se o trailer for visto antes). O segundo problema é que, uma vez que não há grande mistério, o suspense foca apenas em qual será a próxima mirabolante e simbólica peça a se apresentar. E a história fica realmente interessante apenas no como é apresentada.
Bem, talvez eu esteja esperando demais da humanidade (o que eu geralmente não faço), e o espectador médio consiga ficar preso ao suspense apresentado. Se for este o caso, infelizmente, o filme também não deve agradar às massas. Pontas soltas sem explicação são deixadas propositalmente, confundindo um pouco a cabeça dos espectadores. Não digo isso sem conhecimento de causa, pois algumas das reações que vi ao sair da sessão de cinema, demonstram claramente uma frustração nesse sentido. Uma pena, mas a verdade é que não apenas o espectador de cinema, mas o consumidor de mídia em geral tem ficado cada vez mais preguiçoso (de usar a cabeça e pensar).
Se alguém leu até aqui (o que creio que poucos tenham feito), talvez se lembre que eu disse no começo que Cisne Negro contava sua história de maneira excelente, muito acima da média, mas que a história em si, o enredo, era apenas bom. Talvez haja uma interpretação errada do que isso quer dizer, e é compreensível. Um bom enredo ainda é um bom enredo, mesmo sendo ele, apenas bom. E apenas bom só ganha conotação negativa se comparado a algo ótimo ou excelente. (Particularmente, uso a escala bom < ótimo < excelente.) Agora, junte a um bom enredo uma forma magnífica de compartilhá-lo. E temos uma excelente história. E um excelente filme.
O interessante é que, até o terço final do filme, Cisne Negro era para mim, como a personagem Nina. Impecavelmente perfeito, sim, do ponto de vista técnico, mas ainda assim, sem conseguir me seduzir. E, assim como Nina consegue incorporar o cisne negro (se eu disser literalmente, não será mentira), o filme também consegue seduzir conforme ele vai passando. Algo que é simplesmente genial, senhor Aronofsky.
Trailer:
Para saber mais: crítica no Cinema em Cena e no Omelete.
5 comentários:
eu ainda quero assistir só por causa da cena com a mila...
Assisti ontem à noite e achei seu blog por acaso então adorei ler este post. Concordo em muitas coisas, mas ainda preciso formular melhor!
Eu sou blogueira e cinéfila como você, então vou visitar seu blog mais vezes! Visite o meu, tenho um marcador só para filmes (entre outros).
Greetings from Amsterdam
Menino vou assistir hoje esse filme, adorei já ver o teu post sobre ele. bjs
Assisti ao filme hoje, e é muito bom! Realmente tu sai dea sala de cinema perturbado! É bonito, suave e instigante! ADOREI! ;D
Adorei o post :) vi hoje o filme e fiquei com algumas duvidas mas penso ser essa a ideia do filme..deixar-nos na duvida entre o que é ou não real..tal como um doente esquisofrénico.
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