Além da história propriamente dita, outro atrativo do livro é para aqueles que gostam da cultura japonesa. Apesar de ter sido originalmente publicado há quase um século, podemos notar que muitos traços da cultura se mantém. Se alguns hábitos foram mortos pela tecnologia (quem hoje em dia ainda usa braseiros para se aquecer?), podemos ver que muito da sociedade se mantém igual. Talvez o coração e/ou a alma mudem mais lentamente do que outras coisas, afinal de contas.
(Capa da edição brasileira de Coração)
O livro, pela editora Globo, é bem fluido e rápido de ser lido. Apresenta capítulos curtos, o que pra mim é excelente, pois na maioria das vezes não tenho um grande tempo pra ficar lendo direto. Abaixo, parte da resenha publicada pela própria editora Globo:
Coração, de Natsume Soseki, último e mais respeitado romance de um dos criadores da moderna literatura japonesa, é lançado em tradução direta por Junko Ota (que também assina as notas), e inclui prefácio de Roberto Kazuo Yokota e posfácio de Shoji Shibata, professor de literatura japonesa da Tokyo University of Foreign Studies.
Coração é um livro que pulsa entre vários mundos: o mundo particular dos dois personagens principais e o da sociedade à sua volta; o mundo da cultura tradicional japonesa e o da modernização ocidentalizante; o mundo da política interna japonesa e o da política internacional. É, assim, um romance que capta as fortes pulsações desses mundos distintos no início do século XX, e reconstrói o modo como ecoam na vida dos dois personagens, "eu" e "professor" — como que indicando a tensão entre individualismo ocidental e coletivismo oriental, os personagens não têm nome.
O livro se divide, com simplicidade, em três partes: "o professor e eu"; "meus pais e eu"; "o professor e o testamento". Na primeira, "eu" narra sua amizade com o "professor" (que apesar de sugerir uma vasta experiência de vida, não a revela ao jovem amigo). Na segunda, "eu" parte de Tóquio de volta para sua cidade natal, em função da doença do pai (dando ensejo à descrição de suas relações familiares). Coincidindo com a morte do imperador, "eu" deixa, porém, o pai doente e retorna a Tóquio para receber a carta-testamento do "professor" (que constitui a terceira parte do livro, e na qual ele, enfim, revela sua história, incluindo disputas familiares por herança e um triângulo amoroso).
Resenha completa neste link. (Há um pequeno spoiler na resenha.) Lá também tem um pdf com partes do livro.
Abaixo, algumas citações, com passagens do livro que eu acabei marcando:
Numa conversa sobre solidão:
- Eu sou uma pessoa solitária, mas quem sabe você também não é? Mesmo sendo solitário, sou mais velho e posso ficar sem fazer nada, mas com você, que é jovem, não deve ser assim. Tem que se movimentar o máximo que puder, ir atrás de algo. Querer encontrar alguma coisa...
- Eu não me sinto nem um pouco solitário.
- Não há solidão maior do que quando se é jovem.
O professor sobre paixão:
- Quem já experimentou a satisfação de um amor teria se referido a eles num tom mais terno. Mas... mas, sabe, a paixão é um delito.
...
- De qualquer forma, a paixão é delito, sabe? E também é divina.
Eu entendia cada vez menos a fala do professor. E ele nunca mais falou sobre a paixão.
O professor sobre confiança:
- Não confio nem em mim mesmo. Ou seja, como não consigo confiar em mim mesmo, também não confio nos outros. Não há outra coisa senão maldizer a mim mesmo.
A mulher do professor sobre como ela o via com relação a ela mesma:
- A senhora diria então que é rejeitada pelo professor?
- Não acho que ele me rejeite. Não há motivo. Mas ele não gosta da sociedade. Mais do que a sociedade, nos últimos tempos não tem gostado das pessoas. Portanto, como uma delas, não há como ele gostar de mim também.
O professor sobre a morte:
- Mas é que o homem morre, de uma maneira ou outra. Mesmo uma pessoa com saúde morre, a qualquer hora.
O professor sobre pessoas e pessoas más:
- Não me parece que tenha gente má. São todos interioranos.
- Por quê? Os interioranos não são maus?
...
- Os interioranos são até piores do que os moradores da cidade. E você falou agora que entre os seus parentes não parece haver pessoas de índole má. Mas você acha que há só um tipo de pessoas más neste mundo? É claro que não existe um modelo de pessoas más. Normalmente são pessoas boas. Pelo menos, são todas pessoas normais. Mas, numa dada circunstância, tornam-se más, o que é apavorante.
Sobre a efemeridade do homem:
Pensei em quanto o homem é efêmero. Pensei em quão efêmero e insignificante é o homem, com a impotência com que nasce, com a incerteza que tem sobre seu destino.
O professor, explicando o porquê do seu relato:
Meu passado é minha experiência, portanto posso dizer que se trata de algo meu, exclusivo. Morrer sem oferecê-la a ninguém é uma pena.
Esse é o motivo pelo qual eu escrevo algumas coisas pessoais aqui no blog. Acho que seria uma pena eu morrer e não deixar nada...
O professor, sobre seus tempos quando sentia falta de sua terra natal:
Eu, que era ainda uma criança, tinha saudade da casa de minha terra natal. Eu a desejava com alma de viajante, que acredita possuir uma casa para onde pode voltar.
Eu ainda estou à procura de algum lugar que possa chamar de lar. Por isso, ainda sou um Andarilho...
O professor sobre o ciúme e o amor que sentia:
Eu ainda não tenho a intenção de negar os meus sentimentos de ciúme naquele período. Porque, como já expus algumas vezes, eu estava bem consciente dos meus sentimentos, que estavam do lado oposto aos do amor. Ainda, aos olhos dos mais próximos, esses sentimentos vinham à tona por causa das coisas mais insignificantes. Isso é um adendo, mas tal ciúme não seria a outra face do amor? Depois que me casei, tomei consciência de que tal sentimento foi atenuando aos poucos. Em compensação, também o amor não é mais intenso como antes.
O professor sobre teorias e práticas do amor:
Por mais que eu pensasse nela, se ela amava outra pessoa, jamais ia querer juntar-me a essa mulher. No mundo, há quem fique feliz por casar-se com uma mulher de quem gosta, seja como for, mas esse homem é de fato um verdadeiro alienado, ou então um tolo que não consegue entender muito bem a psicologia do amor, assim eu pensava na época. Eu estava apaixonado a tal ponto que não conseguia aceitar a teoria de que uma vez casados tudo se arranjaria. Ou seja, eu era um verdadeiro teórico de amor sublime. E ao mesmo tempo, era um verdadeiro praticante do amor platônico.
Amor platônico é conosco mesmo.
O professor sobre um momento chave de sua vida:
E o impulso que tive naquele momento não era de maneira alguma pequeno. Se K e eu estivéssemos de pé, no meio de um campo aberto, teria lhe perdido perdão, obedecendo à minha consciência. Mas havia gente na casa. Minha espontaneidade foi controlada ali. E infelizmente nunca mais se recuperou.
Eu também ando matando certas coisas assim...
O professor sobre a tentativa de fuga na bebida:
Não digo que gosto de saquê. Mas podia beber, se quisesse, e então tentei enganar meu coração com a embriaguez. Esse método superficial me deixou ainda mais pessimista. No meio da bebedeira, dava-me conta de repente da minha situação. Percebia que era um tolo, fazendo isso de propósito para mentir a mim mesmo. Logo, com uma sacudida, meus olhos e meu coração despertavam. Por vezes, mesmo bebendo muito, não conseguia entrar no estado de estupor, somente afundando-me ainda mais. Além disso, quando comprava o bem-estar com artifícios, sempre havia uma reação depressiva.
Eu bem sei como é isso.
3 comentários:
Juro que na hora que eu estiver com menos sono, eu leio.
Estou lendo... Ando com cuidado nessa leitura, mas não consigo parar... Mesmo caminhando com cautela, sinto que uma estranha força me puxa para o interior desse livro.
Os bons livros são assim mesmo :)
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