Com certeza você já deve ter ouvido alguém falar a frase engraçadinha que "na vida, tudo é passageiro... menos motorista e cobrador". Essa gracinha esconde um clichê, que apesar de ser clichê, não deixa de ser verdade: na vida, realmente tudo é passageiro. Todos somos efêmeros diante dos caminhos que existem. Essa é apenas uma das várias reflexões pela qual o filme brasileiro Ponto Final passa. (E se você quiser saber a minha opinião geral sem ler o texto que ficou enorme, é: eu gostei do filme.)
O fio condutor de Ponto Final é Davi (Roberto Bomtempo), marido de Helena (Dedina Bernadelli) e pai da jovem e sonhadora Beatriz (Julia Bernat). Davi passa por maus momentos, tendo que superar o seu casamento fracassado e especialmente, o assassinato da filha, entrando numa espiral de dor, revolta e desesperança. O que ajudará Davi a começar a se reerguer é um fortuito encontro dele com uma Mulher(Hermila Guedes), que também tem suas cicatrizes emocionais, num ônibus, onde eles começam uma franca e filosófica conversa. Depois desse encontro, os dois irão encontrar novas formas de viver.
Se você bem reparou, o parágrafo acima com a sinopse praticamente entrega a história toda. Peço desculpa por não conseguir sintetizar melhor a história, mas a verdade é que ela é realmente bem simples. Ponto Final é um daqueles filmes que a história é praticamente sabida de antemão (como quase sempre acontece com comédias românticas, por exemplo), mas que se esforça na forma de contar para se diferenciar. E neste quesito, Ponto Final é bem peculiar.
Ponto Final é um filme surrealista. Contado de forma não linear, o filme mistura cenas comuns, ordinárias (como nos flashbacks em que Beatriz aparece se aprontando pra escola ou no flashback da Mulher dançando) com cenas passadas num universo onírico, tipicamente de sonho (como quando a Mulher do ônibus entra para o seu apartamento que é na verdade dentro de um ônibus, ou quando Davi e a Mulher conversam sentados num banco de ônibus e o que se vê a volta é apenas a carcaça do ônibus com o resto de cenário fora do ônibus todo escuro).
É ainda interessante notar como o diretor Marcelo Taranto (também co-roteirista ao lado de Francisco Azevedo), vai mesclando algo mais concreto com algo mais surreal, em alguns bons momentos. Na sequência em que os dois personagens principais se conhecem, Mulher e Davi, no ônibus, reparem como o cenário (o ônibus) começa de um jeito e vai se transformando, se tornando mais onírico. As mudanças são sutis. Primeiro, os dois num ônibus normal, depois o cenário vai perdendo elementos, até culminar numa carcaça vazia. Além de ser interessante visualmente, essa mudança também abre espaço para a interpretação de simbolismos e metáforas que renderiam um texto ainda maior do que este.
Ainda no quesito visual, é bom notar o ótimo trabalho da direção de arte, que conseguiu um ótimo resultado nesses cenários, tanto os escancaradamente oníricos, quanto os que se aproximam da realidade e mesclam os dois mundos, onde paredes ou os lados da cama têm substituídos os seus materiais normais por peças metálicas típicas de pisos de ônibus, onde se é possível observar o padrão peculiar dessas peças (padrão que nada tem a ver com beleza, aliás, mas tem utilidade prática ao não deixar o piso do ônibus mais liso do que deveria).
Apesar disso, Ponto Final é um filme bastante teatral. Apesar do bom trabalho nos existentes, a quantidade de cenários é baixa e frequentemente o espectador toma consciência de detalhes dele, por meio dos diálogos. Por exemplo, quando Davi e a Mulher, depois de saltar do ônibus e caminharem um pouco, se sentam no meio-fio, eles conversam sobre como as pessoas olham para eles, com uma certa estranheza ou desaprovação (e emendando uma crítica social, dizendo que se estivessem aos trapos, ninguém notaria). Entretanto, o que é mostrado na cena é um cenário tipicamente de estúdio, totalmente vazio.
Isso ao mesmo tempo aumenta o surrealismo do filme e o aproxima de uma peça de teatro, o que é quase certo que seja proposital, dados outros elementos presentes na película. Além dos diálogos serem a força motriz do filme, sobretudo as longas e filosóficas conversas entre Davi e a Mulher, a própria atuação dos atores parece seguir uma atuação teatral (mesmo que seja ótima, como realmente é, ainda assim, teatral). Seja na postura, no olhar ou na impostação da voz (projetando-a como se ela tivesse que alcançar o fundo do teatro, por exemplo), é quase como se presenciássemos uma peça. Some-se a isso, os muitos monólogos do Motorista (Othon Bastos) e do Cobrador (Silvio Guindane) do ônibus, que surgem falando diretamente com o espectador (técnica conhecida como quebra da quarta parede, alusão à quarta parede - transparente - que seria por onde os espectadores assistiam os acontecimentos no cenário de três paredes em um teatro).
O que mais chama a atenção de Ponto Final é o seu texto. Realmente ele me parece mais apropriado para a literatura (e talvez para o teatro). Extenso e filosófico, o texto tem sim alguns momentos clichês de auto-ajuda ("Ponto Final é saída obrigatória, é fim de linha. Mas também – questão de tempo – é ponto de partida e recomeço"), mas que nem por isso deixam de lançarem uma reflexão, como a frase citada anteriormente. "Acabar é mais do que morrer", "Cobrar e dar o troco, a isso se resume a vida", "Tocar alguém é diferente de ser tocado, o tato é outro", são alguns exemplos dos excelentes textos que provocam no filme.
Nem tudo é perfeito, entretanto. A crítica social (sobretudo nos "diálogos" do Cobrador com o espectador) e as metáforas envolvendo chaves (as que trancam, escondendo e gerando medo, e as que "dão vida ao motor"), que de certa forma também têm a ver com a crítica social, não soam orgânicas na história, parecem um tanto forçadas (e repetidas à exaustão) para se encaixarem na maioria das vezes (talvez pela montagem, pela insistência de mostrar o cobrador e seus monólogos antes de outras partes).
Neste contexto, é interessante e irônico que uma das únicas cenas de crítica social que se salvam é justamente uma que não é ancorada no texto, mas em técnicas cinematográficas. É quando o cobrador parece "preso" na traseira do ônibus, pelas ferragens que compõem o ônibus e seus suportes para mãos, e a câmera vai se se afastando, mostrando que, apesar do seu discurso recorrente (que a burguesia acaba sendo refém de si mesma, pelo medo e insegurança), ele também se encontrava preso, por outros motivos, mas ainda assim, preso. Trancado. A chaves.
Como um usuário do transporte coletivo rodoviário (também conhecido como ônibus), digo que gostei muito de Ponto Final. Em certa altura do filme, Davi diz que a sua filha Beatriz adorava andar de ônibus, que ela aprendia muito neles, que nos ônibus era um dos melhores lugares para se aprender sobre o ser humano. Concordo plenamente. Quem anda de ônibus, geralmente tem histórias pra contar, e o filme também tem algumas boas. Ou melhor, a Mulher interpretada Hermila Guedes tem boas histórias. Destaco aqui a do rapazinho de uniforme e do vestido vermelho. Excelente.
Enfim, Ponto Final é um filme diferente. É um filme literário, no sentido de que seu texto seria mais adequado a um livro (e talvez seja, pois o filme é baseado em uma obra, cujo título não anotei quando subiam os créditos e não achei informações sobre isso na internet). É também um filme surreal e não linear, que mistura uma realidade concreta com uma mais adequada a sonhos ou pesadelos. Por isso, não é um filme pipoca, pra qualquer um. Some-se a isso, ainda seu ritmo lento e baseado em diálogos (entre os personagens e com o espectador). Entretanto, quem estiver disposto a embarcar numa viagem de ônibus da linha São Cristóvão (o ônibus que aparece no filme, e cujo destino tem o nome do santo ligado a coisas de viagens, como diz a wikipedia sobre São Cristóvão), com certeza vai passar por ótimos pontos até chegar ao seu destino. Ou ao Ponto Final.
Trailer:
Para saber mais: site oficial do filme Ponto Final.
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