A Dama das Camélias conta a história de amor entre Armand Duval, um jovem pequeno burguês do fim do século 18, e Marguerite Gautier, uma das mais cobiçadas cortesãs de Paris. (Para os mais jovens, cortesãs eram as prostitutas daquela época.)
(Capa da minha edição)
O livro é um grande drama e romance, que narra de maneira melodramática o amor verdadeiro e proibido entre esses dois personagens. Quanto às suas qualidades literárias, é um texto fácil de ler, com um bom ritmo e uma linguagem acessível (pelo menos na minha edição traduzida). A história, carregada de emoção, é uma história de amor que, mesmo carregada de elementos que já se tornaram clichês hoje, consegue emocionar. Mesmo que pareça brega. (Mas, enfim, que amor não é brega?)
Contado a partir de um grande flashback, o livro alterna os seus narradores. No início, é o autor pseudo-fictício do livro quem narra a obra, contando como conhece Armand, através de um livro que ele comprara num leilão. Leilão este que era dos pertences de Marguerite, uma conhecida cortesã, recentemente falecida. (Já sabemos de antemão que ela esta morta, portanto, não é spoiler.) A partir de então, Armand assume o papel de narrador, contando a história ao autor do livro e aos leitores. A voz do narrador ainda assume o ponto de vista de Marguerite ao longo do livro, quando ela se expressa por cartas endereçadas a Armand, até a voz retornar ao autor do livro.
Dumas Filho baseou-se em sua própria vida ao escrever A Dama das Camélias, o que talvez explique como o texto é impregnado de uma autenticidade e uma força não habituais. A história de amor entre o jovem e a cortesã fez um bom sucesso, sendo adaptada para o teatro pelo próprio autor, mais tarde inspirado a criação da ópera La Traviata e, posteriormente, adaptado ao cinema.
Particularmente, me emocionei muito lendo A Dama das Camélias. Recomendo a leitura. É um livro rápido de se ler e, em seus temas e elocubrações, se mantém bastante atual. A sociedade, em seu cerne, não muda muito.
Abaixo, algumas (mentira, são muitas) passagens e citações do livro que separei. Os grifos são meus. (E claro, contém spoilers.)
A Dama das Camélias - citações
Logo o início, deixando claro o tom confessional/autobiográfico que o romance assume:
Sou da opinião de que só se pode criar personagens quando já se estudou muito os seres humanos, assim como só se pode falar uma língua na condição de tê-la aprendido a sério.
Não tendo ainda atingido a idade em que se pode inventar, contento-me em relatar.
(Alguém já disse uma vez que você só se escreve bem sobre o que você conhece. É sobre isso a citação acima.)
Sobre a visita do autor ao apartamento onde a Dama das Camélias morava, na visitação pré-leilão pós-morte para pagar suas dívidas:
Era cedo, e, entretanto, já havia visitantes no apartamento e até mesmo senhoras que, mesmo vestidas com veludos, cobertas de caxemira e aguardadas à porta por seus elegantes cupês, observavam com estarrecimento, até mesmo com admiração, o luxo que se desfraldava ante seus olhos.
Mais tarde entendi essa admiração e essa surpresa, pois, pondo-me também a examinar, reconheci facilmente que eu estava no apartamento de uma cortesã. Ora, se há algo que as mulheres da alta sociedade desejam ver - e lá havia mulheres da alta roda - é a intimidade dessas mulheres, cujo séquito macula a cada dia os seus, que têm, como as damas da sociedade, o seu assento no Opéra e no Theâtre Italiens e que esparramam, em Paris, a insolente opulência de sua beleza, de suas jóias e de seus escândalos.
Aquela em cuja casa eu me encontrava estava morta: as mulheres mais virtuosas podiam, então, penetrar no seu quarto. A morte purificara o ar daquela esplêndida sarjeta, e aliás, elas tinham como desculpa - se é que havia necessidade disso - que compareciam a uma venda sem saber à casa de quem vinham. Viram anúncios, queriam examinar aquilo que os cartazes prometiam e fazer suas escolhas com antecipação, nada mais simples. O que não as impedia de procurar, em meio a todas aquelas maravilhas, traços da vida cortesã da qual haviam-lhes feito, sem dúvida, relatos tão estranhos.
Infelizmente, os mistérios haviam sido enterrados com a deusa, e, apesar de toda a boa vontade, aquelas damas encontraram apenas aquilo que fora posto à venda depois da morte, e nada daquilo que se vendia durante a vida da locatária.
(O fascínio que a vida de prostitutas exerce, desde tempos imemoriais.)
Sobre a morte de Marguerite e outras damas de mesma profissão:
Eu estava voltando de viagem. Era bem natural que ninguém tivesse me feito saber da morte de Marguerite como uma das grandes otícias que os amigos sempre comunicam àquele que retorna à capital das novidades. Marguerite era bela, mas assim como a requintada vida dessas mulheres causa alvoroço, a morte delas não o faz. São desses sóis que se apagam assim como nasceram, sem brilho. Sua morte, quando elas morrem jovens, é sabida por todos os amantes ao mesmo tempo, pois, em Paris, quase todos os amantes de uma moça reputada convivem com intimidade. Algumas lembranças a respeito dela são trocadas, e a vida de uns e de outros continua sem que esse incidente a perturbe, sequer mesmo com uma lágrima.
Sobre a origem do apelido Dama das Camélias:
Marguerite assistia a todas as estréias e passava todas as noites em espetáculos ou em bailes. Cada vez que se encenava uma peça nova, podia-se estar certo de vê-la lá, com três coisas que nunca a abandonavam e que ocupavam sempre a frente de seu camarote térreo: seu binóculo, um saco de balas e um buquê de camélias.
Durante vinte e cinco dias do mês, as camélias eram brancas, e durante cinco dias, eram vermelhas. Nunca se soube a razão dessa variedade de cores, que eu assinalo sem poder explicar e que chamou a atenção dos frequentadores do teatro de sua predileção e dos seus amigos tanto quanto a minha.
Nunca se viu Marguerite com outras flores que não camélias. De forma que na loja da Madame Barjon, sua florista, terminou-se por chamá-la a Dama das Camélias, e este apelido ficou.
Com um diálogos que ilustram o que se pensava de Marguerite, e de modo geral, o que se pensa(va) sobre as cortesãs:
- Conheceu uma tal de Marguerite Gautier?
- A Dama das Camélias?
- Exatamente.
- Muito!
Estes "muito!" eram às vezes acompanhados de sorrisos incapazes de deixar qualquer dúvida quanto à sua significação.
- Pois bem, e como era aquela moça?
- Uma boa moça.
- Só isso?
- Meu Deus! Sim, com mais espírito e talvez um pouco mais de coração que as outras.
(Hoje diríamos if you know what I mean...)
Já na voz do apaixonado Armand, sobre idealizações, pudores, oportunidades e sonhos, em relação às mulheres:
Eu tremia frente à possibilidade de me certificar de que Marguerite não merecia o que eu sentia por ela.
Há em um livro de Alphonse Karr, chamado Am Rauchen, um homem que segue, à noite, uma mulher muito elegante e por quem se apaixonara à primeira vista, tão linda ela era. Para beijar a mão daquela mulher, ele sente em si a força para empreender qualquer coisa, a vontade de tudo conquistar, a coragem de tudo fazer. Ele mal ousa olhar o mimoso tornozelo que ela desvenda para não sujar o seu vestido ao contato da terra. Enquanto ele sonha com tudo que fará para possuir aquela mulher, ela interpela-o na esquina de uma rua e lhe pergunta se ele quer subir à casa dela.
O homem volta-lhe a cara, atravessa a rua e vai todo triste para casa.
(Velhos tempos em que um tornozelo ou pedaço de pescoço de fora - ou qualquer outra pequena área de pele visível - faziam voar a imaginação e libido masculinas. E sim, eu sei que não é sobre isso a pequena história.)
Sobre o diferencial da Dama das Camélias:
Enfim, seja devido à sua natureza, seja consequência de seu estado doentio, de tempos em tempos passavam nos olhos daquela mulher lampejos de desejo cuja manifestação seria uma revelação do céu para aquele que ela amasse. Mas já se perdia a conta daqueles que amaram Marguerite. E a conta daqueles amados por ela ainda não começara.
Em resumo, reconhecia-se naquela moça a virgem que um pequeno acidente fizera cortesã, e a cortesã que um pequeno detalhe teria feito a virgem mais apaixonada e mais pura. Havia, ainda, em Marguerite, orgulho e independência: dois sentimentos que, feridos, são capazes de fazer o que faz o pudor. Eu nada dizia: minha alma parecia ter ido parar todo no coração, e o meu coração, nos meus olhos.
(Isso é um resumo bem colocado de como é construída a personagem de Marguerite, de modo a distanciá-la da figura estereotipada "suja" e "interesseira" de cortesã, deixando-a amável aos olhos masculinos, e passível de identificação aos olhos femininos.)
Sobre as condições do amor de Marguerite, a princípio:
- Se soubesse como a amo! - eu dizia-lhe bem baixinho.
- Verdade verdadeira?
- Eu juro.
- Pois bem, se me prometer fazer todas as minhas vontades sem dizer uma palavra, sem me fazer uma observação sequer, sem me questionar, talvez eu o ame.
- Tudo o que quiser!
- Mas, estou avisando: quero ser livre para fazer o que eu bem entender, sem lhe dar a menor explicação sobre a minha vida. Faz tempo que busco um amante jovem sem vontades, apaixonado sem desafios, amado sem direitos. Jamais consegui encontrar um. Os homens, em vez de ficarem satisfeitos de receber durante um bom tempo aquilo que sequer pensaram em um dia obter, exigem de sua amante contas do presente, do passado e até do futuro. À medida que se acostumam com ela, querem dominá-la e tornam-se mais exigentes conforme damos tudo aquilo que querem. Se decido-me a tomar um novo amante agora, quero que tenha três qualidades bem raras: que seja confiante, submisso e discreto.
(O grifo serve para homens e mulheres, de fato. Seres humanos em geral.)
Com os percalços da profissão da Dama das Camélias, por ela mesma:
- Ouça-me - disse-lhe Marguerite -, você vai dizer sempre àquele imbecil que não estou ou que não quero recebê-lo. Estou cansada de ver a toda hora gente que vem me pedir a mesma coisa, que me paga e assim acha que está quite comigo. Se aquelas que começam nossa vergonhosa profissão soubessem como é, prefeririam virar criadas. Mas não: nos atrai a vaidade de possuir vestidos, carros, diamantes. Acreditamos naquilo que ouvimos, pois a prostituição tem seus seguidores, e usamos, pouco a pouco, nosso coração, nosso corpo, nossa beleza. As pessoas têm receio de nós como de uma besta selvagem, desprezam-nos como a um pária, somos rodeadas apenas por pessoas que tomam-nos mais do que nos dão e, um belo dia, morremos como cães, depois de ter perdido os outros e perdido a nós mesmas.
(Uma descrição que permanece ainda atual, na maioria dos casos, creio eu.)
Sobre o amor e a sua conquista, com as diferenças referentes às mulheres castas (daquela época) e às cortesãs:
Ser amado por uma jovem casta, ser o primeiro a revelar-lhe este grande mistério do amor é uma grande felicidade, realmente. Mas é também a coisa mais simples do mundo. Ocupar um coração que não está acostumado aos ataques é entrar em uma cidadela aberta e desprovida de guardas. A educação, o sentimento do dever e da família são sentinelas muito fortes, mas não há sentinelas tão vigilantes que não sejam enganadas por uma moça de dezesseis anos a quem, através da voz do homem que ela ama, a natureza dá aqueles primeiros conselhos do amor, que são tanto mais ardentes quanto mais puros parecem.
Quanto mais a jovem crê no bem, mais se entrega facilmente, se não ao amante, pelo menos ao amor, pois, não tendo desconfiança, também não tem força alguma, e fazer-se amado por ela é um triunfo que qualquer homem de vinte e cinco anos pode conceder a si próprio quando quiser. E tanto isto é verdade que veja como cercam as jovens moças de vigilância e cuidados! Os conventos não têm muros suficientemente altos, as mães, fechaduras suficientemente fortes, a religião, deveres suficientemente inesgotáveis para encerrar todas essas charmosas avezinhas em suas gaiolas, sobre as quais sequer dão-se o trabalho de jogar flores. E assim como elas provavelmente desejam este mundo que lhes é escondido, também devem crer que é tentador, e devem escutar a primeira voz que, através das grades, vai contar-lhes os segredos desse mundo e abençoar a mão que levanta, pela primeira vez, uma pontinha do misterioso véu.
Mas, ser realmente amado por uma cortesã é uma vitória muito mais difícil. No caso delas, o corpo gastou a alma, os sentidos queimaram o coração, a devassidão embotou os sentimentos. As palavras que lhes dizemos, elas as ouvem há muito tempo; os métodos que empregamos, elas os conhecem. Mesmo o amor que elas inspiram já foi anteriormente vendido. Amam por razões profissionais, e não por razões passionais. São melhor cuidadas pelos seus cálucos do que uma virgem o é por sua mãe ou por um convento. Assim também inventaram a palavra capricho, para aqueles amores sem comércio que se permitem de tempos em tempos como um descanso, como desculpa ou como consolo. Semelhantes a aqueles usurários que provocam a falência de mil indivíduos e crêem tudo poder compensar emprestando, um dia, vinte francos a algum pobre-diabo que morre de fome, sem exigir juros e sem pedir recibo.
E depois, quando Deus permite um pouco de amor a uma cortesã, esse amor, que parece, em princípio, um perdão, torna-se para ela, quase sempre, um castigo. Não há absolvição sem penitência. Quando uma criatura que tem todo o seu passado a se recriminar sente-se, repentinamente, tomada de um amor profundo, sincero, irresistível, do qual jamais ela se acreditou capaz, quando ela admite esse amor, como o homem amado passa a dominá-la! Quão forte ele se sente com aquele cruel direito de dizer-lhe: "Você nada fez pelo meu amor que não tenha feito por dinheiro".
(Mais uma vez, o autor traça, naquela época, um retrato bem fiel do presente. Ou seja, as pessoas não mudaram tanto assim. - People don't change - A única diferença é que as jovens de hoje se entregam muito mais facilmente nas questões físicas, por assim dizer.)
Sobre a Dama das Camélias e a origem de todos, num diálogo dela com Armand, depois de uma discussão e o planejamento de uma viagem:
- Então, em menos de um mês, estaremos em algum vilarejo, passeando "a beira da água e bebendo leite fresco. Parece-lhe estranho que eu, Marguerite Gautier, fale assim. Isso advém, meu amigo, do fato de que, quando essa vida de Paris, que parece me fazer tão feliz, não me abrasa, ela me aborrece, e, então, tenho súbitas inspirações sobre uma existência mais calma que me lembre a minha infância. Sempre houve uma infância, seja lá o que for que tenhamos nos tornado.
Numa carta de Armand para Marguerite, naquelas clássicas rotinas de termina/volta da maioria dos relacionamentos, com um alto tom de auto-piedade:
Perdoe-me algumas horas aborrecidas que lhe fiz passar, e tenha certeza de que não esquecerei jamais os momentos felizes que lhe devo.
Teria ido saber notícias suas hoje, mas devo voltar para perto de meu pai.
Adeus, cara Marguerite. Não sou nem rico o suficiente para amá-la como eu gostaria, nem pobre o suficiente para amá-la como você gostaria. Esqueçamos, então: você, um nome que lhe deve ser quase indiferente; eu, uma felicidade que me é impossível.
Numa discussão entre Marguerite e Armand, questões como amor, cortesãs e seus caprichos, a descrição da vida por trás do glamour dessas mulheres da vida, e cães:
Eu escutava e olhava Marguerite com admiração. Quando pensava que aquela maravilhosa criatura, cujos pés eu outrora desejara beijar, consentia que eu entrasse de algum modo em seu pensamento, que tivesse um papel em sua vida e que ainda assim eu não me contentava com o que ela me dava, eu perguntava-me se há limites para o desejo do homem, quando, satisfeito tão prontamente quanto fora o meu, ele aspira, ainda, por alguma coisa.
- É verdade - retomou ela -, nós, criaturas do acaso, temos desejos fantásticos e amores inconcebíveis. Nos entregamos ora por uma coisa, ora por outra. Há pessoas que se arruinariam sem nada obter de nós; outras, que nos têm apenas com um buquê. Nosso coração tem seus caprichos: é sua única distração e sua única justificativa. Entreguei-me a você mais rápido do que a qualquer homem, juro, e por quê? Porque, ao me ver cuspindo sangue, você me tomou a mão, porque chorou, porque é a única criatura humana que sofreu comigo. Vou dizer uma bobagem, mas há muito tempo tive um cachorro que me olhava de um jeito todo triste quando eu tossia: foi o único ser que amei. Quando morreu, chorei mais do que na morte da minha mãe. É bem verdade que ela me bateu durante doze anos de sua vida. Pois bem, amei você tão prontamente quanto ao meu cão. Se os homens soubessem o que podem obter com uma lágrima, seriam mais amados e nós custaríamos menos caro.
Ainda continuando a longa fala, Marguerite discute sobre a vida solitária que cerca as prostitutas, com as falsas amizades e o amor dos homens que, no caso delas, se constitui apenas de um amor próprio e egoísta:
(...)
Além disso - continuou Marguerite -, você era a única pessoa com a qual eu podia pensar e falar livremente, compreendi isso em seguida. Todos aqueles que cercam moças como eu têm interesse em escrutinar nossas menores palavras, em tirar uma consequência de nossas ações mais insignificantes. Nós, naturalmente, não temos amigos. Temos amantes egoístas que gastam sua fortuna não conosco, como dizem, mas com a sua própria vaidade. Para essas pessoas, é preciso que sejamos alegres quando estão felizes, comportadas quando querem jantar, céticas quando o são. É proibido, para nós, ter um coração, sob pena de sermos vaiadas e arruinarmos o nosso crédito. Não pertencemos mais a nós mesmas. Não somos mais seres, mas coisas. Somos as primeiras no amor-próprio deles, as últimas na sua estima. Temos amigas, mas são amigas como Prudence, mulheres outrora da vida que ainda têm gostos extravagantes que a idade não mais lhes permite. Então, tornam-se nossas amigas, ou melhor, nossas comensais. A amizade delas chega às raias da servilidade, jamais ao desinteresse. Nunca darão mais do que um conselho lucrativo. Pouco importa-lhes que tenhamos dez amantes ou mais, desde que ganhem vestidos, ou um bracelete, e que possam, de tempos em tempos, passear no nosso coche e ir ao teatro no nosso camarote. Ficam com os nossos buquês da véspera e pegam emprestadas as nossas caxemiras. Jamais nos fazem um favor, por pequeno que seja, sem fazer com que seja pago pelo dobro do que vale. Você próprio o viu, na noite em que Prudence levou-me seis mil francos que eu mandara que ela pedisse ao duque em meu nome: pegou emprestado quinhentos francos que jamais me devolverá ou que pagará em forma de chapéus que jamais sairão das caixas. Então, só podemos, ou melhor, eu só podia ter uma felicidade, e esta era, triste como fico às vezes, agonizante como o sou sempre, encontrar um homem superior o suficiente para não me pedir contas da minha vida e para ser amante dos meus sentimentos bem mais do que do meu corpo. Esse homem, encontrei-o no duque, mas o duque é velho, e a velhice não protege nem consola. Acreditei poder aceitar a vida que ele me dava: mas o que você quer? Eu morria de tédio, e, se é para se consumir, tanto faz jogar-se em um incêndio quanto asfixiar-se com o carvão. Então, encontrei você. Jovem, ardente, feliz, e tentei fazer de você o homem pelo qual ansiei em meio à minha abrasante solidão. Aquilo que eu amava em você não era o homem que existia, mas o homem que deveria existir. Mas você não aceita esse papel, rejeita-o como indigno de você, é um amante vulgar. Faça como os outros: pague-me, e não falemos mais nisso.
Marguerite, que a longa confissão fatigara, largou-se contra o encosto do canapé e, para abafar um fraco acesso de tosse, levou o lenço aos lábios e aos olhos.
- Perdão, perdão - murmurei -, compreendi tudo isso, mas eu queria ouvi-lo de você, minha adorada Marguerite. Esqueçamos o resto e lembremos de apenas uma coisa: que somos um do outro, que somos jovens e nos amamos. Marguerite, faça de mim tudo o que bem entender, sou seu escravo, seu cão, mas pelo amor dos céus, rasgue a carta que escrevi e não me deixe partir amanhã, eu morreria.
Sobre os ares do campo e os apaixonados:
Sempre se associou o campo ao amor, e fez-se bem, nada enquadra a mulher amada como o céu azul, os perfumes, as flores, as brisas, a solidão resplandecente dos campos ou das florestas. Por mais que se ame uma mulher, não importa a confiança que se tenha nela, por mais certeza sobre o futuro que nos dê o seu passado, somos sempre mais ou menos ciumentos. Se já esteve apaixonado, seriamente apaixonado, deve ter experimentado aquela necessidade de isolar do mundo o ser no qual você gostaria de viver por inteiro. Parece que, por mais indiferente que ela seja àquilo que a cerca, a mulher amada perde seu perfume e sua unidade ao contato de homens e de coisas. E, eu sentia isso bem mais do que qualquer outro. Meu amor não era um amor comum: eu estava tão apaixonado quanto uma criatura comum pode estar, mas por Marguerite Gautier, o que quer dizer que em Paris, a cada passo, eu podia esbarrar em um homem que fora o amante dessa mulher - ou que seria, futuramente. Ao passo que no campo, em meio a pessoas que nunca havíamos visto e que não prestavam atenção em nós, no seio de uma natureza toda enfeitada pela primavera - esse perdão anual - e separada do barulho da cidade, eu podia esconder a minha amada e amar sem vergonha nem temor.
(Ciúmes e status social. Para os homens, vale lembrar a regra, via de regra, é que você não é o primeiro e nem será o último.)
Com declarações apaixonadas:
Fornecer detalhes sobre a nossa nova vida seria coisa difícil. Ela se compunha de uma série de criancices para nós encantadoras, mas insignificantes para aqueles a quem eu contasse. Você sabe o que é amar uma mulher, sabe como os dias ficam curtos e com qual preguiça amorosa nos deixamos ser levados ao amanhã. Certamente não ignora aquele esquecimento de todas as coisas, que nasce de um amor violento, confiante e partilhado. Todo ser que não é a mulher amada parece um ente inútil da criação. Nos arrependemos de já ter jogado migalhas de nosso coração a outras mulheres e não entrevemos a possibilidade de jamais apertar outra mão que não aquela que seguramos entre as nossas. O cérebro não admite nem trabalho e nem lembrança. Nada, enfim, daquilo que poderia distraí-lo do único pensamento que, sem cessar, lhe ofertamos. Cada dia descobrimos na amada um charme novo, uma voluptuosidade desconhecida.
Numa conversa entre Armand e seu pai, discutindo sobre a situação de Armand com Marguerite e seus inerentes problemas perante a sociedade:
- O que o senhor quer? Talvez eu esteja errado, mas só posso ser feliz na condição de permanecer o amante desta mulher.
- Vamos, Armand, abra os olhos, reconheça o seu pai, que sempre o amou e que apenas quer a sua felicidade. É honroso para você viver maritalmente com uma moça que todos possuíram?
- Que importa, meu pai, se ninguém mais a terá? O que importa, se essa moça me ama, se ela se regenera por causa do amor que tem por mim e pelo amor que tenho por ela? Que importa, enfim, se há o arrependimento?
- Ah! Acredita, então, que a missão de um homem honrado seja converter cortesãs? Acredita, então, que Deus deu esse objetivo grotesco à vida, e que o coração não precisa ter outro entusiasmo que não esse? Qual será a conclusão dessa cura maravilhosa, e o que você pensará daquilo que hoje diz quando tiver quarenta anos? Rirá do seu amor, se ainda lhe for permitido fazê-lo, se não tiver deixado marcas fundas demais em seu passado. O que seria de você a essa altura, se o seu pai tivesse tido as suas ideias e tivesse abandonado a vida dele a todos esses ventos de amor, em lugar de se estabelecer de modo inabalável sobre uma ideia de honra e lealdade? Reflita, Armand, e não diga mais tais bobagens. Vamos, deixará essa mulher, o seu pai lhe suplica.
Nada respondi.
(O amor, a importância de ser o último a ser amado pela mulher e o arrependimento e amor como redenção à profissão mais antiga do mundo.)
Numa carta de Marguerite, já no fim da vida, sobre as mazelas da vida:
Aquela esperança de saúde nada mais era do que um sonho. Cá estou, novamente na cama, o corpo coberto de emplastros que me queimam. Que se ofereça esse corpo pelo qual se pagava tão caro outrora, e veja o que darão por ele hoje!
É preciso que tenhamos feito muito mal antes de nascer, ou que gozemos de uma felicidade muito grande depois de nossa morte, para que Deus permita que esta vida tenha todas as torturas da expiação e todas as dores da provação.
Em outra carta de Marguerite, relembrando no fim, o começo:
Oh! Venha, Armand. Sofro terrivelmente, vou morrer, meu Deus. Eu estava tão triste ontem que quis passar em outro lugar que não em casa a noite que prometia ser longa como a da véspera. O duque veio de manhã. Parece-me que a visão daquele velho esquecido pela morte me faz morrer mais rápido.
Apesar da ardente febre que me queimava, fiz com que me vestissem e com que me levassem ao teatro Vaudeville. Julie aplicou-me ruge, sem o que eu teria a aparência de um cadáver. Fui para aquele camarote no qual lhe fui apresentada pela primeira vez. Durante todo o tempo, tive os olhos fixos no assento que você ocupara naquele dia e que um grosseirão ocupava ontem, rindo de todas as coisas tolas pronunciadas pelos atores. Trouxeram-me quase morta para casa. Tossi e cuspi sangue durante toda a noite. Hoje não consigo mais falar, mal mexo os braços. Meu Deus! Meu Deus! Vou morrer. Eu esperava por isso, mas não consigo habituar-me à ideia de sofrer mais do que já sofro e se...
(Eu acho tão triste, mas também tão belo, quando na história, no final, vemos reminescências do início. Especialmente em romances e dramas.)
Simplesmente o fim, com a voz voltando ao autor do livro:
Voltei a Paris, onde escrevi esta história tal qual me foi relatada. Ela tem apenas um mérito que lhe será, talvez, contestado: o de ser verdadeira.
Não tiro desta narrativa a conclusão de que todas as moças como Marguerite são capazes de fazer o que ela fez. Longe disso, mas é do meu conhecimento que uma delas experimentou, em sua vida, um amor sério, que sofreu por esse amor e por ele morreu. Contei ao leitor o que soube. Tratava-se de um dever.
Não sou apóstolo do vício, mas ecoarei a nobre infelicidade em todos os lugares em que a ouvir suplicar.
A história de Marguerite é uma exceção, repito. Mas, fosse uma regra, não valeria a pena escrevê-la.
Para saber mais: link da Wikipedia sobre o livro e um bom texto comentando a obra.
Um comentário:
interessante!!!
Postar um comentário